Capítulo 8

Charlie me estendeu a sua mão quente e áspera para ajudar a chegar ao telhado, ele subira na frente. Estava condenado aquele traidor. Iria morrer. Eu o empurraria de lá de cima, isso era certo, era alto o suficiente para uma morte certa e pareceria um acidente. Com a pressa de ir embora não lamentaríamos muito sua morte, teríamos que fugir, eu, Sarah e Thomas enquanto o corpo de Charlie apodreceria no gramado do quintal até que a manhã raiasse.
Eu tinha que manter a calma, para que ele não suspeitasse. Olhei para baixo quando cheguei lá em cima, mas nada se via. Era uma morte certa. Algo me puxava para aquele infortúnio negro mesmo estando a uma distância razoável. A noite escura não nos permitia ver a grama lá em baixo e com certeza Thomas não poderia ver o que acontecia lá em cima. Como ele reagiria ao ver o corpo de seu irmão de coração inerte e sem vida sobre a grama? Não. Eu não podia pensar naquilo agora. Eu sabia que pensar só me impediria de agir em meu proveito próprio. Eu sempre pus a felicidade dos outros a frente da minha, mas aquele deveria ser o fim. Eu deveria ao menos uma vez ficar em primeiro plano! ...Charlie olhava as telhas a procura das soltas que indicavam o quarto de Sarah, pé ante pé, se equilibrando com o cuidado para não fazer barulho. Aquele era o momento!
O crescente ódio que me cegava e consumia como uma chama, dominando meu corpo e mente insistia.
“Vá!” Começou ele.
Os estalos das telhas me acompanhavam em direção a Charlie.
“Agarre-o!” Ele pedia.
Os seus cabelos loiros e lisos balançavam com o vento gelado daquela noite.
“Jogue-o!” Ele implorava.
E minha mão esquerda segurou-lhe as vestes sobre o ombro sentindo o tecido de lã grossa.
“MATE-O!” Ele mandava.
Eu senti cada músculo do meu braço, cada fibra que eu precisava...
“AGORA!”
Eu sentia as lágrimas do ódio escorrerem quentes pelo meu rosto. Eu ia matá-lo!
“AGORA! MATE-O!”

A dor trancada em meu peito explodiu num choro silencioso enquanto meus joelhos sediam em direção as telhas. Eu era um incapaz. “MATE-O!” Algo falava dentro de mim. “MATE-O!” Repetia incessantemente. “MATE-O! ! !” E respondi semi consciente. “Não posso...”
Uma faca afiada era fincada em meu peito a cada frase. Cada ordem recebida e desobedecida.
“MATE-O, SEU PORCO INÚTIL”
A faca afundava.
“Ele é meu amigo...”
Perfurando cada parte da minha alma.
“INIMIGO, SEU PORCO MEDROSO!”
Eu estava morrendo. Estava me afogando pela dor que corroia meu peito. Estava sufocando, juntando esforços para gritar em minha mente e ganhar a disputa por minhas ações.
“NÃO!”
Libertei-me enfim.

- O que houve Ivã? – perguntou-me Charlie aos sussurros, eu ainda o segurava, quase que ele caiu quando eu cedi as telhas. Agora eu rezava para que ele não percebesse minhas lágrimas. – Aconteceu alguma coisa? – Me sussurrou ele.
Achei que ele não tinha notado. Abaixei de pressa meus ouvidos para as telhas.
- Acho que ouvi algo lá em baixo. – menti numa ação rápida.
Ele se curvou também e esperou um momento.
- Não ouço nada, já passou?
Respirei fundo e enxuguei as lágrimas.
- É, já passou. – sussurrei.
- Melhor a gente esperar um pouco, não é?
Confirmei com a cabeça e nos sentamos. Incrivelmente depois de meu descontrole emocional uma súbita paz me invadiu. Talvez por meus pensamentos ausentes, não sei bem. Eu realmente estava com tudo em ordem novamente, eu simplesmente não existia naquele momento.
- Você... – comecei – Promete que vai cuidar bem da Sarah?
Charlie me sorriu docemente. – É claro. Eu a amo.
Acenei com a cabeça. É claro que sim... Quem não a amaria? Mas será que ele a amava tanto quanto eu? Eu, que não sabia viver sem ela? Eu, que era capaz de dar minha vida por ela? Era impossível alguém amá-la tanto quanto eu amava. Eu em meu amor insano e apaixonado que agora estava fadado a ficar preso em minha alma, escondido, incorrespondido, inmanifestável...
- Eu cuido dela, - disse ele novamente – Não querendo assumir seu lugar, mas eu cuido dela se um dia você não estiver por perto.
Eu o olhei penetrando em seus gentis olhos castanhos. Reconheci aquela frase. Eu a disse anos antes para Charlie quando ele estava preocupado com Thomas. Era diferente, nem eu nem ele estávamos apaixonados por Thomas quando eu disse aquilo, mas mesmo assim, aquela frase me fez bem. Eu senti que era sincera.

Tiramos o mais delicadamente possível as telhas sobre o quarto de Sarah. Enquanto o sopro frio do vento no telhado batia na minha face quente eu a vi. Lá estava ela olhando para cima e sorrindo para nós numa mistura de alívio com suprema alegria. Que saudade eu tinha daquele rosto, daquele sorriso, dela... Tinham se passado dois meses... Incrivelmente nesse meio tempo ela estava com uma fisionomia mais mulher, mais madura e seu corpo parecia ter mais curvas...
- Oi. – ela nos sussurrou num sorriso. Seus olhos brilhavam.
- Oi. – respondi sorrindo também sussurrando, ela era linda como eu me lembrava.
- Está pronta, mocinha? – perguntou Charlie bobo e sorridente ao meu lado, algo me feriu quando me lembrei de sua existência.
- Claro. – ela respondeu com um sorriso doce.
Virou-se e de baixo da cama ela puxou uma enorme trouxa, parecia ter despejado ali todas suas roupas e ainda mais coisas. Por um momento achei a cena cômica.
- Sarah... – disse eu sem jeito – Nós vamos a cavalo, não numa carroça...
- Como assim?
- Tem coisa demais ai, Sarah. – respondeu Charlie.
Sarah olhou para a trouxa que batia no seu joelho.
- Estamos fugindo Sarah, não nos mudando... – disse ele.
Ela fez um beicinho mimado e abriu a trouxa. De lá saltaram como molas roupas, sapatos, pães e alguns objetos que se espalharam pelo chão.
- O que eu levo?
- Bem... Não sei... Umas duas roupas no máximo. – respondi.
- Somente duas?
- Bem, com a que você está vestindo somam três...
Charlie acenou com a cabeça em concordância, pelo menos com ele ao meu lado eu não parecia tão cruel fazendo-a se livrar de seus pertences. Sarah jogou roupas e mais roupas para fora de sua trouxa que agora ficara bem menor. Levando seu vestido preferido e um simples sem tingimento, também escolhera um sapato, um pente, fitas e outras coisas pequenas nós a deixamos levar para agradá-la, mesmo achando-as desnecessárias, e é claro, os pães. Ela afastou sua colcha de lã e colocou seu banquinho tripé em cima das taboas da cama e nos passou sua trouxa. Em seguida estendemos o braço para que ela viesse ao nosso encontro no telhado.
- Esperem. – disse-nos ela. – Ainda tem mais uma coisa que eu quero levar.
Ela se dirigiu a penteadeira e tentou arrancar-lhe o espelho de quase meio metro. Charlie e eu nos entreolhamos confusos.
- Sarah! – disse Charlie – Você está louca? É grande demais!
- Mas era da minha mãe... – respondeu melancólica.
- Não pode levá-lo inteiro, é grande demais! Quebre um pedaço então. – sugeri.
Ela pareceu triste por um momento depois concordou. Pegou o travesseiro e o pôs sobre a penteadeira apoiando-o no espelho, em seguida golpeou-o com o banquinho tripé. Fez-se um barulho agudo e seco, o vidro estava quebrado. Por um momento pensei que a Senhora Coppais fosse acordar, mas nada se manifestou. Sarah pegou o maior caco e nos passou.
- Alguém quer um pedaço? – perguntou-nos melancólica.
- Eu quero. – disse eu com um sorriso.
Ela me sorriu e girou nos calcanhares para pegar mais um pequeno pedaço do espelho quebrado sobre a penteadeira. Me passou um pequeno pedaço do tamanho de minha mão que pus no bolso. Ela deu uma última olhada em seu quarto e nós a puxamos para cima, agora sim, finalmente Sarah estava livre. Ela se equilibrou nas telhas e respirou profundamente o ar a sua volta com um gracioso sorriso no rosto, as pequenas gotas de chuva salpicavam seu rosto. Reparei os seios que apareceram sob as vestes, estavam bem maiores do que quando parti.
- Livre. – ela disse baixinho.
Sarah se virou e me abraçou. “Senti sua falta.” Disse-me docemente, cortando meu coração de um modo indescritivelmente agradável. Ela estava mais alta. Antes Sarah batia abaixo de minha orelha, agora já chegara à sobrancelha. O calor do seu corpo era como uma fogueira num dia de neve, era quente, agradável e sobretudo preciso para sobreviver, me perguntei como pude agüentar tanto tempo longe disso.
Soltou-me e se virou a Charlie me privando do calor do seu corpo.
- Senti sua falta também. – ela disse e deu-lhe um abraço sem graça, mas demorado, ao qual invejei.
Vasculhei meu bolso a procura do caco de espelho que ela me dera para não olhá-los e me encarei no reflexo por um momento. O pequeno caco me mostrava um adolescente magro e esquisito, achei-me feio comparado a Charlie, não muito, mas um pouco, também não muito pouco, só... Feio. Os grandes olhos verdes até que eram bonitos, mas o nariz era anormalmente grande, o queixo que começava a ter barbas mal distribuídas e a boca fina que me disse lenta e sussurrante. “Deveria tê-lo matado.”

Capítulo 7

As carroças já estavam saindo na manhã. Eu, Charlie e Thomas nos sentamos na última que carregava a mobília, Álfie nos deixou responsáveis por ela, eu conduzia os animais que a puxavam, embora não precisasse de muita atenção, já que eles seguiam as carroças à frente. Da janela do seu quarto, Sarah nos acenava sorridente.
Íamos resgatá-la no aniversário de Charlie, à exatamente dois meses. Ele ia completar 16 anos e esperávamos que ele recebesse uma ajuda do padre Fixar, nós iríamos com ele, conversaríamos com o clérigo assim que chegássemos. No dia do aniversário de Charlie nós voltaríamos à mansão, resgataríamos Sarah e então partiríamos seguindo pela estrada ainda sem rumo certo, a procura de uma cidade costeira desse reino, o que não seria muito difícil, já que se tratava de uma ilha.
- Voltamos em breve Sarah. – disse eu baixinho enquanto acenava de volta e estalei o chicote para que os bois começassem a andar. Enquanto nos afastávamos Charlie e Thomas que se sentavam na parte de trás da carroça entre as cadeiras com os pés quase arrastando na terra acenavam para Sarah energicamente. Era um belo dia ensolarado, o dia em que deixamos a mansão.

Nos três meses que ficamos fora eu imaginava Sarah melancólica, seria infeliz. Às vezes ela escreveria em seu caderninho, fazendo planos talvez, para sua grande fuga. Será que ela pensava em mim? Bem... Devia ser certo que sim... E Charlie? Será que ela pensava mais nele do que em mim? Eu comecei a pensar se a distancia faria com que ela percebesse o quão eu era importante para ela, afinal, foram três meses de extrema tortura para mim. Eu só pensava nela.
Eu fantasiava todos os dias, ela levantando de sua cama e lavando o rosto numa bacia com água fresca, logo em seguida ela tomaria um desjejum, provavelmente a Sra. Coppais estaria ensinando-a a preparar um, ocasionalmente Sarah erraria alguma coisa, ela era estabanada, então deixando os ovos quebrarem ou queimando a comida. Com isso a Sra. Coppais lhe desferiria um severo tapa na bochecha rosada e lhe daria um sermão.
- Sua porca! Olhe o que fez! Eu não vou viver para sempre. – ela diria – Você vai ter que aprender a cozinhar para o seu marido. Não importa quantos servos uma nobre como você tenham, todas as mulheres devem aprender a cozinhar para seus maridos! Agora limpe isso.
Sarah simplesmente pegaria um pano e velho e limparia a bagunça, porque embora sua criada a Sra. Coppais era demais respeitada por Sarah, desde pequena foi ela quem a vigiou. Com seu pai morto e sua mãe doente em cama, Sarah foi criada e educada a maior parte do tempo por ela. Depois de limpo o chão Sarah deveria ter outras aulas com a Sra. Coppais, tear talvez, acho que era isso que as mulheres deviam fazer, assim foi-me ensinado no tempo em que eu não me chamava Ivã. Com o tear devia ser a mesma coisa: um erro, um tapa, um sermão e um recomeço, até que em fim ela fizesse uma bela peça e a Sra. Coppais lhe faria um elogio satisfeito.
As tardes, como eu sabia, ela receberia a visita da Duquesa e de seu filho. Voltaria a ser triste, monossílaba e desinteressada. As senhoras recomeçariam uma série de elogios as suas crias enquanto tomariam um chá na varanda, deixando os noivos longe o bastante dos ouvidos para deixá-los conversarem em paz, mas não longe o bastante de seus olhos curiosos que os avaliariam a cada instante.
- Devia ser horrível para uma dama como você viver aqui com todos aqueles garotos. – Eu ouvia Deniel dizer, Sarah meramente daria os ombros e continuaria com o olhar vagando pelo quintal. – Quero dizer... Eles não são como nós! São brutos e sujos! – Sarah não diria nada, só continuaria distante. Eu a conhecia o suficiente para saber que ela não concederia aquele sujeito nem mesmo o privilégio de uma discussão, ela fazia isso comigo quando estava zangada por alguma razão, não demonstrava, simplesmente agia como se fosse apática.
Eu sabia que as noites, depois de vestir a camisola e se deitar ela olharia para o teto, para as telhas que ela sabia que ainda estavam soltas e então ficaria pensando em todos nós, em nossas aventuras, em nossos risos e sorrisos, talvez até em nossas tolas discutições. Veria nosso jovial passado, refletiria sobre nosso triste presente e pensaria no nosso incerto futuro. E lá ela ficaria olhando para cima até adormecer, às vezes sorrindo, por vezes chorando.

E assim se passaram dois longos meses.

A noite estava anormalmente fria quando fomos buscar Sarah, chuviscava e ventava. Era o aniversário de Charlie, os tão esperados 16 anos. Naquela tarde o padre Fixar deu igual quantia em moedas para nós, não era muito, agora, nem me lembro exatamente quando, mas daria pra cada um comprar um cavalinho magro. Era uma ajuda que ele sempre nos dava com moedas que conseguia nas missas, por vezes justificava esse gasto como uma gratidão pela ajuda que dávamos à igreja, o que não era muito verdade, embora auxiliássemos na missa e cuidássemos da horta e animais que pertenciam a igreja, não fazíamos mais que nossa obrigação. Despedimo-nos dele com abraços e tapinhas nas costas à porta da igreja e caminhamos pelos paralelepípedos da rua principal até a casa de Alfie, tínhamos que nos despedir dele também, que tinha cuidado tão bem de nós. Lá estava ele, atrapalhado bronqueando alguns meninos novos que pareciam ter armado alguma coisa.
- Deixar a cidade? – perguntou-nos distraidamente – Hum... Eu já esperava. Para onde vão?
- Ainda estamos decidindo isso. – respondeu Thomas animadamente.
- Alguma sugestão, Alfie? – perguntei.
- Esse velho não conhece outro lugar que não seja esse vilarejo, meu rapaz. Não tenho o espírito aventureiro que parece habitar seus jovens corpos. – ele piscou – Dizem-me que os vilarejos mais próximos ficam a algumas milhas. Há uma cidade, hum... Lyr eu acho. É uma boa cidade pra quem quer aventuras, tem bastante gente por lá, e emprego também, foi o que me disseram.
- Em que direção?
- Sul. Pelo menos se não me falha a memória. – começou a rir naquele seu tom grave – Dizem que lá fica o mar... Já lhes contei histórias sobre o mar certo? E as sereias, eim? Os monstros marinhos, hehehe. Os muros não cercam só a terra sabem, o mar também é protegido por muros. Deve ser uma grande cidade... Com grandes navios...
Alfie pareceu vagar um pouco por seus pensamentos fantasiosos. A verdade é que não tínhamos pensado por onde seguir até então. Não tínhamos procurado saber de nenhuma cidade. Por sorte Lyr parecia exatamente o que procurávamos. Mas era estranho deixar todos, saber que nunca mais os veríamos, pessoas que por tanto tempo fizeram parte da nossa vida, pessoas que víamos todos os dias. Depois de umas informações sobre a direção da cidade abraçamos calorosamente Alfie que continuava atrapalhado cuidando dos pequenos meninos, ele nos deu sua benção, assim como o padre tinha feito.
- Cuidem-se bem, meus meninos. Vejam lá o que vão aprontar por ai, senhores espertinhos. Seus projetos de homem! – Ele nos piscou e nós nos fomos – Deus abençoe vocês! – gritou-nos acenando sorridente da varanda o pequeno homem gorducho e careca de olhos de besouro que ficava cada vez menor enquanto caminhávamos pela rua para nunca mais voltar, eu sentiria falta dele. Principalmente de suas histórias.
Tínhamos deixado a aldeia um pouco antes de começar a escurecer, mas já era muito tarde quando começamos realmente a nos aproximar da mansão. Olhei para o céu nublado de onde pequenas gotas desciam rápidas e leves... “Quando a lua estiver no ponto mais alto.” Foi o que tínhamos combinado com Sarah, era uma pena que só desse para ver a sombra da lua por de trás das nuvens, eu sempre achara muito belas as luas decrescentes, até mesmo mais que as cheias. Ao meu lado os meus dois melhores amigos olhavam distraidamente para a mansão, ela nos parecia bem menor agora que voltamos depois de tanto tempo. Mas o jardim para mim continuava grande, assim como a floresta negra que nos cercava.
Carregávamos pequenas sacolas de couro com alguns pertences, penduradas sobre nossos ombros, na minha eu levava apenas algumas roupas e uma faca, o dinheiro que tinha ganhado eu guardaria sempre nos bolsos.
- Acham que já está na hora? – perguntou Thomas olhando o céu, tinha arranjado um chapéu pontudo com uma longa pena vermelha na vila, presente de um dos meninos ao qual ele ensinara a ler, ficara com mais cara de menino do que de costume, um ar jovem e alegre.
- Acho que não. Vamos esperar mais um pouco.
Atravessamos a grama até o celeiro lá longe, eu estava com uma sensação estranha, uma adrenalina de quando se faz algo ilegal, era ao mesmo tempo ruim e ótimo. Selamos os cavalos e arriamos o asno amarrando o cabresto na sela de Lança, isso não demorou mais de 15 minutos. Agora só nos restava esperar. Sentia-me estranho, ansioso, entusiasmado, preocupado... Havia algo no meu estomago, uma dor estranha, que nem era realmente dor, era um embrulho, havia algo semelhante em minha garganta também. Sentei na entrada do estábulo com as pernas para fora e fiquei observando ora grama, ora o céu nublado. Charlie sentou-se ao meu lado, estava agitado, olhava para todos os lados até que respirou fundo e se dirigiu a mim.
- Ivã... Posso te contar uma coisa?
- Claro. – respondi ainda distraído com a grama.
Ele suspirou outra vez e algo terrível cortou meu peito quando ele disse a frase que ainda soa em minha mente.
- Eu amo a Sarah.
Algo me perfurou o peito.
- Sabe... – ele continuou e eu ainda não acreditava no que tinha ouvido – Eu não me envolveria numa situação dessas se não a amasse. Mas eu a amo.
Minha mente estava vazia. O certo seria eu responder alguma coisa na hora, até mesmo gritado! Defendido meu lado, pra mim esse seria o certo. Eu a amava! Eu a amei primeiro! EU ! ! !
- É diferente daquela garota que a gente viu na cidade quando pequenos, sabe? Aquilo era só admiração misturada com curiosidade, algo assim. Mas com a Sarah é diferente, eu sinto que faria qualquer coisa por ela. Eu daria minha vida pra ficar com ela.
Algo me despedaçava por dentro, eu sentia cada pedaço de mim ser cortado por um aço quente e impiedoso. Eu deveria ter contado ao Charlie que a amava! Assim eu teria o direito de ficar com ela, ele que procurasse outra garota! Como eu fui imbecil! Agora que ele tinha me contado eu nada poderia dizer, até mesmo porque eu sabia que ela gostava dele também. Qualquer coisa que eu dissesse agora, referente a amá-la seria inútil. Seria levado como traição! Perderia meus melhores amigos e também a Sarah. O que eu poderia fazer? Algo me sufocava.
- Ela é sua melhor amiga não é? – ele me perguntou. É claro que era, ele sabia, sabia que sim. – Eu tinha que te contar. Não só por você ser meu amigo como por você ter esse laço com ela. Sabe... Esse amor de amigo, de irmão.
AMOR DE AMIGO? AMOR DE IRMÃO? Que palhaçada era aquela? Ah... Agora eu entendera. Ele já notara que eu a amava como ele. Até mais que ele! Por isso dizia essas palavras, eu deveria ser só amigo, um titio de seus filhos, meus sentimentos deveriam ser só relativos à amizade. Para ele isso seria perfeito! Por isso ele afirmava que assim era, era sua esperança! Ele também não queria me perder como amigo, mas fazia isso para que mais tarde eu nada pudesse fazer para contestá-lo. Afinal eu era só um amigo. Eu queria estrangulá-lo naquela hora.
- É por isso que está aqui, não é? Por que você a ama como irmã.
Ele repetia para firmar a idéia na minha cabeça, quanto mais ele repetia mais chance aquilo teria de ser verdade. E mais eu tinha a vontade de matá-lo! De que ele nunca tivesse existido! De que ele não fosse meu amigo para poder estrangulá-lo! Amigo? Seria mesmo? Agora eu me sentia ao lado de um traidor! De um inimigo! Por que logo ele? Por que logo Charlie? Por que logo agora? Eu sentia que ia explodir, que não agüentava mais segurar o grito que estava trancado em mim! Sentia que ia chorar. Chorar tal o ódio que sentia naquele momento. Sentia que ia matar Charlie. Ou brigar com ele até a minha morte. Ia me levantar e pular em seu pescoço até que a voz de Thomas freou meu impulso.
- Acho que já está na hora.
- Vamos lá buscá-la então. – respondeu Charlie suspirando. – Vem comigo Ivã.
Eu estava refreando uma careta, tentando disfarçar o ódio em mim. Sentia os músculos da minha face se contraírem assim como os órgãos dentro do meu peito. Minha cara deveria ser muito estranha naquele momento, algo bizarro. Respirei fundo e disse “Vamos!”.
Iríamos eu e Charlie, pegamos a escada no estábulo. Eu estava calado tentando controlar meu ódio e ao mesmo tempo ele aumentava dentro de mim. O fato de eu estar sozinho com Charlie dava ainda mais margem a isso. Aquele traidor! Estaríamos sozinhos também no telhado. E enquanto subíamos as escadas até o telhado no segundo andar e eu sentia cada farpa, cada gota de chuvisco, cada som, cada cheiro no ar... Tive certeza de uma coisa. Eu jogaria Charlie do telhado.

Capítulo 6

- IVÃÃÃ ? ! ? ! – ouvi meu nome sendo chamado ao longe – SARAAAH ! ? ! ? – Parecia a voz de Charlie. Logo em seguida a de Thomas repetiu o mesmo chamado.
- AQUI ! ! ! – gritei para eles e Sarah se juntou a mim.
Logo ouvimos o barulho dos cacos e das folhas e galhos quebrando se aproximar. Que alívio! Das trevas em que nos encontrávamos de repente a cabeça negra do cavalo Lança surgiu como um fantasma sólido entre as velhas árvores, de suas narinas saia o vapor de sua respiração.
- Oh, desgraça! – exclamou Thomas que conduzia o cavalo – Eles também estão perdidos! Isso não é o final da floresta!
- Vocês sabem o caminho de volta? – perguntou Charlie por detrás dele esperançoso.
- Eu gostaria de saber... – respondeu Sarah depressivamente.
Resolvemos virar os cavalos na direção onde tínhamos vindo e posemo-nos a percorrer por entre a vegetação hostil. Agora os galhos pontudos nos incomodavam mais e o som dos animais nos alarmava, estávamos tensos, com frio e com medo.
Passamos lá o que nos pareceu uma eternidade desconfortável e sinistra, sempre seguindo em frente, por vezes cutucando os cavalos com os calcanhares para que eles não parassem ou seguissem a diante forçados entre as grossas cascas de salgueiros, carvalhos e outras árvores de grande porte, por vezes o pensamento de que jamais acharíamos a saída me assolou. Percebemos que o caminho que tínhamos tomado estava errado, mas a aquele ponto, tentar voltar seria um erro, então continuamos a seguir em frente, parecia termos ido ao coração da floresta, nenhum outro lugar eu evitaria tanto quanto aquele. Lembro de minha mente vazia, de não conseguir pensar em nada, concentrada naquele nada que era a escuridão a minha frente, meus pensamentos tinham se tornado parte da escuridão, a única coisa que eu sabia era que devia seguir em frente.
Em certo lugar as árvores davam espaço ao que nos pareceu uma singela trilha entre as árvores, se não estivesse tão escuro eu mesmo teria descido para examinar, mas nada me tiraria de cima daquele cavalo àquela hora, muito menos naquele lugar. Viramos os cavalos em direção a trilha e deixamos que eles nos guiassem por ela, talvez seus extintos fossem mais aguçados que os nossos, meros semi-adultos aventureiros e tolos. As árvores ficaram mais finas e espaçadas conforme andamos, a floresta estava chegando ao fim, agora restava-nos saber onde ela ia acabar.

Estávamos numa larga estrada de terra. Finalmente ar fresco! Foi o que consegui pensar. E me espreguicei respirando a atmosfera fresca com cheiro de capim. As minhas costas, Sarah perguntou onde estávamos, nenhum de nós sabia a resposta. Estávamos numa estrada larga, a lua nos deixava ver um pouco da terra batida e pedras no chão, na outra margem conseguíamos enxergar um campo de capim negro e azulado que se balançava ao vento. Era algo belo.
- Tem uma casa ali à diante. Da pra ver uma luz ali. Talvez ainda estejam acordados. Podemos parar e perguntar onde estamos.
- Caro Thomas, acha que não iriam desconfiar? Um grupo de rapazes com uma garota? É melhor não. – comecei.
- Eu vou. – disse Charlie – Sabem... Sozinho. Depois eu volto com informações. Serei apenas um andarilho perdido à procura da cidade mais próxima, então eles não devem desconfiar. Da aldeia poderemos nos guiar de volta.
Assentimos. Aproximamos-nos devagar em nossas montarias num passo lento e ritmado, o que nos pareceu uma casa agora víamos que era um castelete de pedras cinzas-claras, foi quando ouvimos gritos enfurecidos saindo de lá. Havia uma discutição entre um homem e uma mulher, ambos gritavam descontrolados em um cômodo do primeiro andar. Da janela encortinada víamos suas sombras andarem de um lado para o outro numa dança frenética, nos aproximamos até que os urros começaram a ficar entendíveis.
- EU NÃO QUERO MAIS ESPERAR!!! – gritava o homem descontrolado.
- VOCÊ ACHA QUE EU QUERO??? VOCÊ DEVERIA ME AGRADECER POR TER CONSEGUIDO UMA. SABE O QUANTO É DIFÍCIL? DEVIA SABER O QUANTO TEM SORTE!
- SORTE??? SORTE POR TER NASCIDO NESSE REINO IMUNDO AMALDIÇOADO POR DEUS???
- SORTE POR EU LHE TER CONSEGUIDO UMA NOIVA. DEUS SABE QUANDO EU CONSEGUIREI UMA PARA O SEU IRMÃO. QUE ELE NÃO ME OUÇA, MAS ESTA, VOCÊ SABE QUE DEVERIA SER DELE!
- EU NÃO TENHO CULPA DA MINHA TER DESAPARECIDO!
A discutição abrandou um pouco. Aquilo estava nos intrigando. Sarah estava aterrorizada. Foi então que eu percebi, aquela deveria ser a casa dos Kyout e o homem estupidamente grosso, o candidato a noivo dela.
- QUERO ESSE CASAMENTO O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL! – recomeçou o homem com rispidez.
- VOCÊ ACHA QUE EU TAMBÉM NÃO QUERO?
- Quando vou vê-la. – ele se acalmou e com cuidado arriscamos chegar mais perto.
- Amanhã. Aquela velha vaca Coppais quer nos “entrevistar”, mas não se preocupe é certo que nós ganharemos. Somos os mais nobres da região. Agora, há, fico me perguntando quem ela pensa que é! Como se aquela estúpida fosse capaz de avaliar alguém, isso é só para me dar dores de cabeça. Se seu pai não estivesse tão longe ela não se atreveria!
- Qual é mesmo o nome dela?
- Da sua noiva?
- É! ESSA VADIA MESMO.
- Sarah.
Senti Sarah que fincou as unhas em mim soluçando e chorando – Vamos embora. – Ela pediu num esforço. E fomos.

Chegamos em casa em alguns minutos de marcha, foi fácil descobrir o caminho depois de descobrir onde estávamos. Sarah não cessava o choro. Eu também me sentia abatido, um pouco por ela, um pouco por mim mesmo. O futuro nos aguardava mais cedo do que esperávamos e não era nenhum pouco agradável.
Levamos Sarah novamente para o telhado enquanto Thomas desarreava os cavalos. Sarah tinha parado de chorar e entrara num silêncio absoluto e infeliz. Enquanto Charlie retirava as telhas eu a observava em seu sofrimento sem saber o que fazer ou dizer. Seu belo rosto claro marcado pelas lágrimas secas, o vapor de sua respiração subindo ao céu, seu olhar, doloroso olhar sem esperanças. Quando Charlie terminou de abrir o rombo no telhado ele se virou para Sarah e a segurou pelos ombros encarando-a e falou com um tom sério.
- Não deixaremos que nada de ruim aconteça com você. Está entendendo?
Ela o olhou e jogou seu corpo abraçando-o com força e ele a sussurrava no ouvido incessantemente. Nada de ruim vai acontecer a você... Nada de ruim vai acontecer a você... Nada de ruim vai acontecer a você...
Por um instante ele me olhou, eu me sentia um estranho vendo os dois, ao mesmo tempo sentia ciúmes, me culpei por esse sentimento tão egoísta naquela hora, mas era verdade, queria interromper aquele abraço, mas ele estendeu o braço para que eu me juntasse a eles e ficamos os três abraçados no telhado sob as estrelas. Sentindo o calor uns dos outros naquela noite triste e fria.
- Nenhum de nós vai deixar isso acontecer. – eu disse.
- Nenhum de nós. – repetiu Charlie – Nem o abobalhado do Thomas lá embaixo.
Sentimos as bochechas de Sarah que sorriu e depois nós a abaixamos de volta ao quarto onde ela apoiou com leveza os pés sobre a cadeira tripé em cima da cama. E antes que a última taboa fosse posta no lugar Charlie tornou a falar.
- Nada de ruim vai acontecer a você. É uma promessa.

O resto da noite foi curto, não demorou muito a amanhecer. Deitei-me sobre as peles que eram minha cama e fiquei pensando até adormecer. Acordamos exaustos ao som da voz de Alfie que mandava todos saírem da cama, senti que não tinha dormido nem ao menos 20 minutos, cambaleamos para descer as escadas e chegar à cozinha, onde tomaríamos o desjejum. Demos pela falta da Sra. Coppais, confirmamos depois que ela estava arrumando a sala de visitas no segundo andar para receber os Kyout.
Sarah surgiu acompanhada da Sra. Coppais enquanto almoçávamos naquele mesmo dia. Estava usando um de seus melhores vestidos, de cor vinho com detalhes em branco e vermelho, estava deslumbrante. Passou por nós sem nos olhar, mas jogou-nos um bilhete que pedimos a Thomas que lesse.
- Eles chegarão depois do almoço. Sala de visitas, segundo andar. – Thomas leu.
- Só isso? – perguntei
- É. O que escrevemos em resposta?
- Escreva... – começou Charlie – Escreva assim: Estaremos com você. Se ficar com medo olhe para cima.
Thomas começou a escrever e eu fiquei encarregado de lhe entregar. A Senhora Coppais estava almoçando com Sarah no fundo do salão, numa mesa de madeira quatro lugares.
- Olá Sra. Coppais. – disse eu me aproximando com meu melhor sorriso amigável, fico imaginando agora como aquilo devia soar falso, ainda mais pela minha cara de sono, se eu fosse julgar por Charlie e Thomas saberia que estava com as piores olheiras imagináveis.
- O que você quer? Não vê que eu estou ocupada? – respondeu-me ela sem olhar para mim.
- Queria saber quais são minhas tarefas de hoje. – menti e passei o bilhete para Sarah que começou a lê-lo disfarçadamente por debaixo da mesa. Como ela poderia estar tão bela depois de uma noite como aquela? Eu me perguntei por um instante esquecendo da Senhora Coppais – A senhora não nos deu nenhuma hoje de manhã.
- Se eu não mandei fazerem nada, então não façam nada. – disse ela com rispidez. – Agora vá.
Comecei a me retirar quando ela me chamou novamente.
- Ivã! – disse ela quando eu já tinha me dado por salvo - Tive uma idéia melhor, diga a todos que cuidem da horta e animais nos fundos da casa e não apareçam aqui até que eu vá chamá-los. Não quero uma alma por aqui.
Acenei em concordância e voltei. Dirigindo-me aos garotos dispostos tagarelas pelas mesas, informei-lhes do trabalho para a tarde. Houveram alguns murmúrios descontentes dos meninos ao saberem que aquele não era um simples dia de folga e todos continuaram a comer. Virei-me então para meus comparsas sussurrando.
- Ao telhado?
Eles confirmaram.
- Ao telhado!

Retiramos algumas telhas com a ajuda do martelo antes que houvessem pessoas na sala abaixo de nós e as ajeitamos para que deixassem um vão por onde pudéssemos olhar, a sala era quadrada e com grandes janelas de grossas cortinas cinza-claro, tinha algumas poltronas de estofado marrom, um grande tapete retangular no centro que combinava com as poltronas e alguns adornos espalhados pelos cantos sobre as mesinhas, como vasos e flores que a Sra. Coppais devia ter posto pela manhã.
Logo a Senhora Coppais chegou trazendo Sarah sendo segurada com força pelo braço esquerdo e a jogou numa poltrona, mesmo sendo magra e pequena a Senhora Coppais era deveras muito forte. - É bom você se comportar como uma donzela refinada, mocinha. – disse ela com severidade - Se não nunca mais vai sair daquele quarto, não importa o que o padre Fixar diga! – se virou para sair – Eu volto logo, com o padre, seu noivo e sua nova sogra. Se arrume direito!
Ouvimos o baque da porta se fechado com força. Eu sabia que a Sra. Coppais não era uma má pessoa, mas agora ela me parecia extremamente perversa. Sarah olhou ao redor e em seguida para o teto a nossa procura.
- Psiu!!! – chiou Thomas e moveu sua telha para que ela o visse. Eu e Charlie o imitamos. E assim que Sarah nos viu abriu um melancólico sorriso, sentimos que ela estava desesperada e aflita.
Ouvimos novamente o som da porta rangendo suavemente e nos apreçamos à repor as telhas no lugar. Do ângulo onde estávamos as pessoas se resumiam à cabelos e ombros, raramente víamos os rostos e o primeiro a entrar foi uma figura de cabelos escuros que começavam a mostrar fios grisalhos, cortados de forma que havia um grande circulo careca bem no centro. Era o padre Fixar, ele vinha tagarelando alegremente algo sobre a educação de Sarah.
- Ela é muito prendada, um doce de menina...
Logo atrás dele um grande homem de quase 25 anos, cabelos grandes e loiros amarrados num rabo de cavalo com uma fita azul que combinava com sua roupa cheia de babados e laços, se não o tivessem visto na noite anterior diria que era o homem mais civilizado e educado de todos, uma perfeita Lady. E em seguida o que pareceu sua mãe, não devia ter mais de 40 anos, seus cabelos loiros estavam um bocado grisalhos e presos impecavelmente num coque apertado, ela vestia um elegante traje cinza claro. Por fim vinha a Sra. Coppais, caquética e sem graça misturada aquelas pessoas elegantes, mesmo vestindo uma bonita roupa que fiara para ocasiões assim. Ela fechou a porta atrás de si.
- Deniel também é muito prendado. – gabava-se a mãe – Tem um dom para negócios, puxou isso do pai. E como é educado! E inteligente! Um perfeito cavalheiro.
Um cavalheiro que gritava com a mãe e chamava a própria noiva de vadia. Pensei. Quanto cavalheirismo.
Sarah estava de pé segurando as mãos em frente ao corpo, tinha a cabeça baixa e um ar melancólico. Seu pretendente a noivo lhe fez uma reverência e beijou-lhe a mão.
- É um prazer finalmente conhecê-la Senhorita Sarah.
Sarah fez uma curta reverencia puxando de leve o vestido vinho e dobrando os joelhos graciosamente.
- Ela está meio assustada, só isso. – falou a Sra. Coppais ao ver o total desinteresse de Sarah.
- Ela não precisa ter medo diante do futuro marido.
- Pretendente a marido, Duquesa. Isso nos vamos decidir hoje. – corrigiu o padre.
- Ah, sim, mas certamente não acharão ninguém melhor do que o meu Deniel.
Para mim, qualquer um seria melhor do que o “Deniel dela”. Pela fresta das telhas nos observamos uma troca de cortesias monótona. Eles se sentaram nas poltronas organizadas em circulo e começaram uma série de galanteios e elogios sobre os futuros noivos. Deniel tem aquilo. Sarah é boa nisso. Etc, etc, etc.
Deniel exibindo um largo sorriso de dentes perfeitamente brancos estava elegantemente sentado numa das poltronas em frente à Sarah encarando-a, às vezes se virando para falar entusiasmadamente com o padre ou a Sra. Coppais quando lhe dirigiam alguma pergunta. Sarah era uma perfeita monossílaba olhando para o chão desinteressada. Assim se passaram 3 horas de reconhecimento dos conjugues e de suas posses. Certa hora a Duquesa bateu as mãos sobre o colo animadoramente falando.
- E então, já podemos marcar o casamento?
- NÃO! – a voz de Sarah gritou assustada surpreendendo todos.
- Não? – indignou-se a Duquesa.
- Ah... Ela só está assustada Duquesa. – tentou intervir a Sra. Coppais e olhou reprovadoramente para Sarah – Ela não sabe o que diz. Com certeza Deniel é o melhor noivo que acharíamos para ela em anos, em centenas de anos.
- Certamente é. – disse friamente a Duquesa com um ar esnobe.
- Eu adoraria me casar logo. – recomeçou Deniel forçando um sorriso.
- Oras... – indagou o padre Fixar – Para que apressar as coisas? Sarah ainda não parece muito segura, não acham? Ela ainda é muito jovem, aposto que ela gostaria de conhecer se noivo um pouco mais antes do casamento. O que acham?
Na falta de solução, todos concordaram a adiar o veredicto. Por esses e outros motivos eu admirava tanto o padre Fixar, ele conseguia dar seu jeito para tudo ficar um pouco mais fácil. Mas haviam conseqüências. Infelizes conseqüências. A duquesa decretou com a concordância do padre que quando Sarah fizesse 15 anos eles teriam que se casar e que até lá ela recebesse visitas constantes de Deniel. E por fim ela e exigiu que todos os meninos teriam que deixar a mansão dos Aêrrok.

Na semana seguinte preparávamos as carroças para partir, essa passou a ser a tarefa matinal de todos. Íamos embora no dia seguinte, ainda não sabíamos para onde, os meninos mais novos iam ficar com Alfie em sua velha casa na vila, alguns mais velhos já tinham passado da hora de ficar sob sua guarda e sairiam para seguir suas próprias vidas dali por diante, nós, eu, Charlie e Thomas íamos ficar um tempo com o padre Fixar com mais uns 3 garotos. Dentro de mais que oito meses, Sarah completaria 15 anos.
Cada um de nós levava alguns objetos para as carroças, algumas roupas, algumas ferramentas, alguma comida, na verdade não tínhamos muito, as carroças serviriam mais para levar o amontoado de garotos menores que não agüentariam uma caminhada tão grande. Sarah nos olhava da janela de seu quarto, com as mãos apoiadas no vidro, estava chorando. Era difícil para todos nós.
À noite, quando todos foram dormir eu, Charlie e dessa vez Thomas também, subimos no telhado. A noite estava agradavelmente fria, o que fazia nossos narizes e maças do rosto ficarem gelados e soltarmos baforadas de vapor quando falávamos, era lua cheia e a paisagem era iluminada por seu brilho azulado, do segundo andar víamos grande parte da floresta, um mar azul escuro com alguns picos mais claros, das árvores mais altas. Lá em cima retiramos as telhas que davam ao quarto de Sarah e a puxamos para cima, ela usava uma camisola branca que parecia reluzir naquela escuridão. Ao nosso lado ela não sorriu como de costume, num ímpeto descontrolado ela começou a chorar baixinho, nós a abraçamos.
- Eu... – começou ela entre soluços – Eu não queria que vocês fossem embora...
- Também não queremos ir Sarah – disse eu e uma faca cruelmente afiada me rasgou sem piedade o peito.
- É. – retrucou inconformado Thomas – Acha que temos escolha?
Sarah sentou-se no telhado e de seus doces olhos azuis ainda escorriam lágrimas. Ela segurou os joelhos em frente ao corpo e começou a balançar para frente e para trás, eu detestei vê-la assim, a menina corajosa e atrevida das minhas tardes naquela casa, a minha melhor amiga, o meu amor secreto, ela estava se desmoronando à minha frente. Sentamos junto a ela, num circulo apertado de calor humano, naquela noite que agora nos parecia horrendamente mais fria do que qualquer outra que tínhamos vivido.
- Eu não quero me casar! – chorou ela e eu a abracei, ela apoiou a cabeça sobre meu peito e ficou ali por um bom tempo soluçando, até que então ela respirou fundo e engoliu o choro. Como se de repente voltasse a ter coragem ela exclamou num tom seco. – Vamos fugir!

Capítulo 5 (Parte 2)

Estávamos extasiados com sorrisos bobos enquanto montávamos Lança e Andarilho naquela noite. Escapamos com facilidade do quarto que dividíamos com mais 7 garotos e então eu e Charlie subimos novamente no telhado e sorrateiros levantamos as toras que soltamos de manhã e puxamos Sarah para fora. À noite nós tínhamos que tomar muito mais cuidado, eu desci primeiro pela escada e logo depois de mim veio Sarah, estava insegura, mas era corajosa.
Encontramos Thomas que tinha selado os cavalos enquanto efetuávamos o resgate. Dividimos-nos, eu e Sarah fomos em Andarilho e é claro eu fui na garupa, não tive coragem de apoiar minhas mãos em sua cintura para me equilibrar melhor, acabei segurando na sela. Charlie foi conduzindo o outro cavalo, na garupa Thomas também segurava a sela.
A noite estava belamente estrelada e fria. Partimos guiados por Sarah que nos levou por uma trilha na floresta até o rio num passo manso para não nos perdermos. Lá respiramos o ar fresco da floresta enquanto ouvíamos a melodia da noite, o som do rio ao nosso lado, o balançar das folhas com a brisa, o barulho dos cavalos respirando e os animais da floresta. Seguimos pela margem conversando sobre assuntos tolos e divertidos às vezes ficando quietos só para apreciar a noite. Eu sentia o cheiro dos cabelos de Sarah a minha frente, tinham um perfume doce, não sei se ela tinha se perfumado para o passeio, mas não achei improvável, ela era muito vaidosa, a Sra. Coppais lhe ensinara isso.
- Vocês gostam de sangue? – Ela nos perguntou descontraída certa hora e eu pude notar pela sua voz que sorria alegremente, mas não entendi a pergunta.
- Como assim sangue? – Perguntou Thomas também não entendendo.
- Vocês sabem... Quando se cortam sai sangue, não é? Vocês já devem ter provado. Gostam do sabor?
Eu não gostava muito, tinha certo gosto de ferrugem e era meio enjoativo de se lamber por muito tempo. Mas Sarah parecia gostar, ficamos discutindo isso por um tempo. Charlie lhe disse em tom de brincadeira que ela era meio doida por gostar disso, foi então que se Sarah calou, senti que ela não tinha gostado. Quis voltar.
- Ora vamos, Sarah. Não temos nem meia hora de passeio e você já quer dar no pé só por essa bobagem? – reclamou Thomas.
- Concorda com ele, Ivã? – Disse ela virando na cavalo para me encarar.
Por que raios ela me perguntou isso até hoje não faço idéia. Eu não sabia que lado tomar. Por que me envolver naquilo? Eu não queria ir embora, então respondi da melhor forma que encontrei que concordava com Thomas. Não foi uma boa idéia.
- SE VOCÊ QUER FICAR, ENTÃO DESÇA DO MEU CAVALO! PORQUE EU VOU EMBORA! – gritou irada e senti que ela começaria a chorar.
- Não Sarah, não é isso, eu...
- DESCE DO MEU CAVALO, AGORA!!! – a voz dela tinha alcançado um timbre agudo e assustador. Eu desci e ela virou o cavalo e o pôs pra galopar.
- SEU IMBECIL! – gritou Charlie para mim – POR QUE A DEIXOU IR? Thomas desça!
Thomas pulou do cavalo e Charlie disparou atrás de Sarah. Lança era mais rápido que Andarilho, eu sabia que ele a iria alcançar. Mesmo assim torcia para que não conseguisse. Imbecil? Ele não podia me chamar assim! O imbecil tinha sido ele! Ele a chamou de doida! Bem, agora eu concordava com ele. Afinal, o que tinha dado nela? No fundo eu sabia que a culpa não era nem minha nem de Charlie e também não era de Thomas. Ficamos nós dois parados ouvindo o som dos cascos na terra fofa diminuindo. Thomas começou a caminhar calmamente na direção em que seguiram os cavalos. Eu fiz o mesmo olhando para o chão.
- Essa menina está mesmo meio doida. – disse ele – A pressão deve estar acabando com ela.
- Como assim?
- Ah, você sabe. A Senhora Coppais e o padre Fixar escolheram essa tarde um noivo pra ela.
Eu tinha me esquecido. Eu tinha sido mesmo um imbecil. Não era hora de contrariá-la. Ela devia estar se sentindo péssima. Comecei a olhar para a escuridão à nossa frente tentando enxergar algo adiante, o som dos cascos já tinha sumido, agora só restava o som de nossos próprios passos.
- Você sabe quem eles escolheram? – Thomas me perguntou.
- Faz diferença? Com certeza não foi nenhum de nós.
Thomas riu, ele sabia que era verdade.
- Bem, eu sei quem é. – disse – Lembra há uns anos quando estávamos nos mudando pra cá? Naquelas carroças?
- Lembro. – respondi agora curioso, o que isso tinha haver com o casamento de Sarah.
- Ótimo. Bem, lembra que paramos em frente a um casarão onde morava um tal Duque que ficou preocupado com a nossa vinda pra cá?
Eu ri, eu lembrava sim.
- Foi aquele que nos fez pensar que a Sarah era uma espécie de menino esquisito?
- Esse mesmo. Lembra dos filhos dele? O mais velho é o aspirante a noivo da Sarah.
Fiquei quieto, eu lembrava, era pomposo como o pai. Com ar de superior, o rosto eu não lembrava muito, mas era bem mais velho que nós na época. Devia ser uns 10 anos mais velho que Sarah. Pra mim era uma diferença muito grande.

Depois de mais um tempo caminhando ouvimos cascos se aproximando lentamente. Charlie e Sarah estavam voltando. Esperamos eles chegarem perto.
- Vamos continuar nosso passeio rapazes. – disse-nos Charlie.
Voltamos calados para nossas garupas. Os cavalos voltaram a andar num ritmo manso e nós continuamos calados até que resolvi falar com Sarah e me aproximei para sussurrar ao seu ouvido.
- Me desculpe. – eu disse baixinho, sabia que não era minha culpa, mas faria de tudo por ela, não me importava quem era o culpado.
Ela suspirou longamente e virou o rosto para me beijar a bochecha.
- A culpa foi minha. – ela me sussurrou em resposta e eu sorri.

Continuamos a cavalgar em passos lentos pela margem do rio. Em meio a escuridão ninguém podia ver, mas eu ainda sorria, abobalhado e feliz. Afinal, o meu estrago não tinha sido tão grande assim. Parei de sorrir quando me lembrei do que tanto afligia Sarah, isso também me atormentaria durante um bom tempo.
Quando vimos que o passeio não ia prosperar muito resolvemos voltar. Charlie perguntou se Thomas queria conduzir o cavalo e eles trocaram de lugar.
- Quer ficar no comando? – perguntou-me Sarah melancólica.
- Não se importa de ficar na garupa?
- Não.
Eu achei que ela estava me testando, mas não estava. Ela desceu do cavalo e eu pulei do lombo para a sela e a ajudei a subir. Suas delicadas mãos seguraram minha cintura quando ela se ajeitou atrás da sela.
- Podemos correr? – perguntou abestalhadamente o sempre alegre Thomas e Charlie concordou. Também me pareceu uma boa idéia.
- Você se importa? – disse eu à Sarah.
- Não, seria divertido. – ela ainda estava melancólica, mas pareceu sorrir.
- Então vamos apostar uma corrida! – gritei para meus companheiros. – Três... Dois... Um... JÁ!!!
Saímos num galope desvairado que nos jogou com força para trás. Seus corpos subiam e desciam em incrível velocidade, era a primeira vez que os via correr assim. Eu soltara as rédeas e me agarrava à sela desesperado enquanto Sarah abraçava minha cintura com força para não ser lançada na escuridão. O vento soprava intensamente em direção a nossos rostos, ao nosso lado uma dupla animada gritava e ria energicamente e Sarah se juntou a eles. Senti às minhas costas o vibrar de seus risos e alegria, foi então uma gigantesca sensação de êxtase me envolveu num doping de pura felicidade. A vida não podia ser mais bela!
Os cavalos desgovernados corriam velozmente enquanto nós quatro ríamos alto em nossa sublime liberdade. Ríamos quando ficávamos para trás, mesmo com a zombaria da dupla que nos passava. Gargalhávamos quando nosso cavalo arranjava mais energia e ultrapassava nossos amigos. Rimos e gritamos quando eles erraram a curva e se embrenharam na floresta e nós fomos atrás. Não conseguíamos parar de rir nem quando os galhos das velhas árvores prendiam em nossos cabelos e nos arranhavam. A mata impedia que os cavalos continuassem galopando, mas não os impedimos que avançassem cada vez mais. Só parávamos de rir para ganhar fôlego e rir mais, era contagioso.
- Onde... Onde aqueles dois estão? – Sarah perguntou quando paramos e soltou minha cintura, ainda estava meio sem fôlego por tanto rir.
Respirei fundo e respondi com o fôlego faltando – Não sei... – puxei mais ar – Perdi eles de vista logo depois que entramos aqui... CHARLIEEE? ! ? THOMAAAS? ! ?
Agora que tínhamos parado de rir a floresta parecia assustadora, soturna e gelada. Sarah se juntou a mim e continuamos gritando seus nomes sem que eles nos respondessem. Isso era ainda mais apavorante. Sarah me segurou novamente fincando as unhas na minha cintura.
- Vamos voltar, por favor. – senti o medo na sua voz. Concordei e tentei manobrar Andarilho entre os galhos e árvores que nos cercavam.
- Acho melhor eu descer do cavalo e ir puxando. – disse.
- Não! – ela me pediu e fincou mais forte as unhas em mim – Por favor, fique aqui... Fique comigo...
Em poucos segundos eu vivera uma salada de emoções. Primeiro fiquei vaidoso, confiante e corajoso, por Sarah ter dito aquilo. Depois eu repetia incessantemente em minha mente o quanto a amava e que era maravilhoso estar à sós com ela, mesmo que suas mãos me machucassem a carne. Então me senti impotente e desorientado, para onde ir? Como tirar-nos dali? Por fim também senti medo, um medo terrível daquele lugar, medo provocado pela noite, por Sarah, pelo som dos animais que estavam ali e pelas malditas histórias de suspense que Alfie nos contava e que sempre, sem exceções, envolviam aquela sinistra floresta na qual nos encontrávamos.

Capítulo 5 (Parte 1)

E eu sabia ser feito de bobo, não sei se estava mais frustrado ou feliz, eu a beijei, ela me enganou. Porém se pudesse, faria tudo novamente. Sarah depois se mostrou um pouco magoada porque eu a beijei, eu não entendi, ela não tinha pedido?
- Era um teste seu bobo, não era pra me beijar.
- Então porque não desviou?
Ela ficou calada por um tempo.
- Você me pegou de surpresa...
Agora eu estava muito confuso pra saber se era mesmo verdade se aquele beijo tinha sido especial somente pra mim ou não. Estávamos voltando, andando lado a lado sobre a grama do quintal e ela agora falava como se nada tivesse acontecido, eu não me expressava muito, mas procurava disfarçar minha tristeza confundida com meu estado extasiado. Sem nenhum dos dois dizer qualquer coisa sobre onde íamos, acabamos no estábulo.
O espaço era amplo e aberto, chão de pedra, armação de madeira, com 5 baias do lado direito. Na primeira baia estava o cavalo de Sarah, um Palomino imponente e forte. Logo depois estava Lança, um belo cavalo negro calçado de brando nas quatro patas até os joelhos e um sinal, também branco, na testa. Mais a diante estava o asno, gordo e cinza com um jeitinho alegre que só os burros tem. A última baia estava vazia, digo, de animais, usávamos-a para guardar ferramentas e ração para os animais.
- Olá Andarilho, como estás? – Sarah perguntou ao cavalo palomino da primeira baia, pegou a raspadeira e entrou na baia para começar a escová-lo. Era seu cavalo, morria de ciúmes dele, brigaria com qualquer um que lhe montasse sem sua permissão, levei anos para notar o quanto Sarah era mimada. – Ivã, pegue pro Andarilho um pouco de milho, por favor. – pediu-me sorrindo gentilmente.
Fui até o saco, despejei de má vontade um pouco de milho no pote e o entreguei a Sarah, ela o despejou no cocho e continuou a acariciar seu animal, ao nosso lado Lança relinchava indignado pelo nosso desinteresse por ele, com pena também lhe servi um pouco de milho. Sarah me perguntou o porquê de eu estar tão calado, há! Como se não soubesse o motivo, ela sabia muito bem. Ficamos ali, calados distraindo-nos com os cavalos para não entrar em qualquer assunto, até que ouvimos passos se aproximando.
- Olá Ivã. Sarah? – era Thomas, tinha acabado de entrar e ao seu lado Charlie.
- Olá. – cumprimentou Charlie - A Senhora Coppais nos mandou cuidar dos cavalos. Aliás, ela está como louca atrás de ti, Sarah, disse-nos que você fugiu da vista dela mais uma vez hoje.
- Depois eu me resolvo com ela. E podem deixar que deste eu cuido. – disse Sarah com um sorrisinho, já fazia um tempo que Sarah e meus amigos se conheciam, poderiam se considerar amigos, mas Sarah ainda parecia insegura perto deles, principalmente de Charlie, falava com ele quando podia, mas não o olhava nos olhos, embora sempre o observasse quando ele não estava olhando.
Eu invejava Charlie nestas horas, eu queria não perceber, não saber que ela estava apaixonada por ele. Eu fingia que era mentira, ela também fingia, não contaria isso nunca a ninguém, era muito orgulhosa para isso. Charlie acenou em concordância com a cabeça pra Sarah e foi cuidar de um cavalo negro, Charlie era o tipo de garoto que nunca se sabia o que estava pensando ou sentindo realmente, por trás de seus atos havia sempre algo que nos fazia pensar qual era sua verdadeira intenção.
- Seria bom se pudéssemos fazer um passeio com eles qualquer dia, o que acham? – disse Thomas indo à direção ao asno, e se dirigindo ao asno começou a falar com uma voz retardada – Ia gostar, não ia burrinho?
- Acho que a senhora Coppais não deixaria – disse Sarah
- Por que não fala com ela Ivã? A Senhora Coppais confia tanto em você. – zombou Thomas
- Sarah poderia usar de seu charme feminino para isso. – comentou Charlie
- Mas fácil o Ivã usar do charme feminino – riu-se Thomas
- Meus caros, vocês não tem idéia o poder de sedução de nossa ilustríssima companheira. – sorri e ela me lançou um fulminante olhar cortante e desaprovador.
- Não duvido caro Ivã, não duvido nadinha. – disse Charlie encarando-a, e ela corou e se escondeu atrás do cavalo sem graça, eu notei, me senti idiota por ter dito aquilo e mais idiota ainda por Charlie ter conseguido deixá-la encabulada por minha culpa, mentalmente eu pensava: Maldição!
- Se bem que charme feminino não deve funcionar de mulher pra mulher... Funciona Sarah?
- Duvido disso Thomas, - falou ainda detrás de seu animal – Comigo não funcionaria. Seria perda de tempo falar com ela... Bem... O que acham de uma pequena aventura?
Acabamos decidindo que faríamos um pequeno passeio à noite sem a permissão da Sra. Coppais, nem nos arriscaríamos à pedir. Mas isso não era para aquele dia, precisávamos melhor planejamento, até porque seria preciso resgatar Sarah do seu quarto onde ela sempre dormia trancada e as chaves estavam sempre acompanhando a Sra. Coppais. Precisávamos de um plano.
Continuamos a conversar enquanto tratávamos dos animais, hora eu ajudava um, hora ajudava outro, nesse vai e vem desligado, fazia as coisas de modo automático, meio em transe, voltei a pensar no beijo, só pensava nele, agora me achava meio idiota por isso, será que Sarah também pensava nele? Eu queria beijá-la novamente, alias, queria beijá-la muitas vezes mais.

Era comum que Sarah passasse a maior parte da semana longe de mim. Víamos-nos menos depois do beijo, falávamos pouco, disfarçávamos nossos olhares encabulados, por alguns momentos pensei que não éramos mais amigos e me senti mal por isso. Pareceu-me que ela me evitava, ou seria eu que a evitava?
É impressionante como nós, seres humanos, temos a irritante mania de complicar as coisas simples, eu poderia simplesmente me declarar. E seria tão bom se ela me aceitasse, nada nos impediria de ficar juntos, fugiríamos, teríamos uma casinha pequena, do nosso jeito e ninguém nos incomodaria lá, seria nosso lugar, e só nosso, e pra lá fugiríamos e nos esconderíamos deste mundo que nunca nos fez bem. É impressionante também como nós, seres humanos, temos a irritante mania de sonhar muito alto, pois eu sabia, esse sonho era irreal.
Eu me sentia tão ridículo pensando sobre o amor, era algo só definido nas histórias fantasiosas de Alfie, era fantasioso demais amar, parecia que só eu amava, ao mesmo tempo achando que ela me amava e sabendo que era mentira. Eu as vezes me achava pessimista, mas não era. Em minha mente Sarah era a garota ideal, mas como todo ideal é só uma idéia nossa, e eu só fui descobrir isso bem tarde, Sarah não era tão perfeita como eu a via. Mas ela era a minha idéia preferida e continua sendo.

Ficamos uns dias sem vê-la, Sarah não tinha conseguido escapar de uma surra e um castigo. A Senhora Coppais estava preocupada com o futuro dela vivendo entre tantos meninos, dizia que teria que casá-la logo e quando o padre Fixar apareceu na terça-feira, como de costume ela discutiu o assunto com ele. Fiquei indignado ao saber que o padre tinha concordado. Logo ele que era tão nosso amigo. Ele ia trazer na próxima semana uma lista com os candidatos.
O que não faltavam a Sarah eram pretendentes e como a Sra. Coppais era sua responsável ficou encarregada de escolher um bom partido para ela. O padre Fixar conversou com Sarah, fiquei sabendo por um dos garotos, ela gritou e chorou, não queria se casar de forma alguma. Eu já tinha conversado o assunto com ela, Sarah não queria um marido arranjado pela Senhora Coppais, queria poder escolher um que amasse. Eu já sabia qual era sua escolha, não era eu. Mas eu não estava ligando muito pra isso quando ela me contara, era minha melhor amiga, por enquanto era o que bastava.
Reunidos naquela manhã fria de primavera às 05h30min eu, Charlie e Thomas estávamos reunidos com os demais garotos tomando nosso desjejum, leite e pão passado, já duro, do dia anterior. Nada que fosse novidade, mas conversávamos animadamente sussurrando sobre nosso passeio as escondidas ainda sem dia marcado, mas ainda tínhamos que bolar uma forma de fuga para Sarah para nosso passeio a cavalo. Eu continuava preocupado com a lista que o padre Fixar ia trazer, ele viria naquele mesmo dia à tarde.
Os rostos à mesa que nos observavam eram familiares, já faziam 6 anos que eu me juntara aos meninos, mas a verdade é que não éramos muito unidos, haviam grupos de 3 ou 4 meninos, normalmente se união pela idade ou por laços de sangue, os três garotos Gorson eram um desses casos, tinham chegado a uns 4 anos e andavam sempre juntos, tinham mais ou menos a nossa idade, mas eram fechados no seu mundinho, Thomas era da idade do irmão do meio e já tentara ser seu amigo, sem sucesso. À cabeceira da mesa estava Alfie, nesses 6 anos estava um pouco mais careca e gordo, o que, quando eu o conheci, acharia impossível.
A Sra. Coppais caminhava entre nós, às vezes espichando os ouvidos para tentar nos entender. Com o passar do tempo eu até passei a gostar dela, assim, ela era uma boa pessoa, só rabugenta e rancorosa, mas no fundo ela era boa e simples, embora no momento em que a vi naquele dia estava muito amargurado com ela naquele dia por conta do casamento que ela queria arrumar para Sarah. Em dias comuns eu sorriria e lhe desejaria um bom dia, mas dessa vez eu procurei ignorá-la e não falar com ela.
Todas as manhãs ela nos dava tarefas como, cuidar do jardim, animais, casa, etc. Aos garotos menores eram sujeitas tarefas mais simples como lavar a louça, varrer a casa e tirar poeira dos móveis, aos maiores as mais difíceis como consertar móveis e arar da pequena plantação no fundo do jardim. Eu e Charlie ficamos com a responsabilidade de consertar as telhas que tinham quebrado com um galho no dia anterior, estávamos reunidos na cozinha quando aconteceu, um estrondo que poderia ser confundido com o som da tempestade lá fora. Corremos para um dos quartos no segundo andar e nos deparamos com as camas cobertas com a água da chuva que ainda encharcava as encharcava, telhas quebradas e pedaços do que seria um galho absurdamente grande do carvalho do quintal.

- Ainda está escorregadio, - me alertou Charlie ao sumir por cima do telhado – Acho melhor deixarmos isso para amanhã. – ele gritou.
- Melhor não. – respondi já chegando ao final da escada que encostamos à parede para chegar ao telhado. – A Sra. Coppais ficaria muito zangada.
Passei as ferramentas para Charlie que em seguida me puxou para ajudar-me a subir no telhado, ao nosso redor tudo parecia meio nublado. Estava realmente perigoso, o telhado tinha criado uma espécie de limo que nos fazia derrapar e estava sujo pelo que pareciam anos de folhas. Caminhamos agachados tomando cuidado para não estragar ainda mais as telhas, elas tinham mais ou menos um palmo meu de largura e um pouco mais que meu braço de comprimento, por sorte o telhado era só ligeiramente inclinado. Arrastamo-nos até o rombo e olhamos o quarto abaixo onde alguns meninos limpavam a bagunça causada pela tempestade, os cumprimentamos e pusemos a por toras e a martelá-las num mesmo ritmo mecânico até que o único vestígio do acidente com o galho fossem as novas toras de madeira que se destacavam no telhado, agora já não estava nublado e o céu azul acima de nós esbanjava um sol branco e agradável.
Enquanto voltávamos e começamos a descer pela escada lembrei-me de uma coisa.
- Charlie, volte! Tive uma idéia.
Subi de novo ao telhado e olhei a minha volta calculando por baixo daquela multidão de telhas os cantos da casa. Alguns passos para frente... Virando a direita... Mais alguns passos... Comecei a remover os pregos de algumas telhas com o martelo, enquanto isso Charlie surgia novamente no telhado.
- O que está fazendo? – Perguntou-me.
- Procurando o quarto da Sarah.
Ele veio a mim e se abaixou começando a me ajudar a retirar as telhas. Quando tínhamos consertado o telhado notei que as vigas que sustentavam as telhas eram distantes o suficiente para que uma pessoa pudesse passar. A minha esperança é que desse para ver Sarah. Retiramos uma telha e olhei para baixo, era o quarto dela. Começamos então a tirar mais algumas.
O espaço que eu bem conhecia da época que a Sra. Coppais ficara doente continuava o mesmo, com a cama de Sarah no centro com mesinhas, uma de cada lado, um armário à esquerda e uma penteadeira com uma cadeira tripé à direita perto da grande janela com um parapeito de onde Sarah normalmente observava a vida lá fora. E lá estava ela, com um vestido branco simples, mas que nela parecia o mais belo que eu já tinha visto, seus cabelos negros estavam pretos por uma fita vermelha num rabo de cavalo. Ela olhava para cima, com certeza tinha percebido o estranho movimento sobre o teto. Assim que me viu abriu aquele claro sorriso surpreso. Ah! Como era belo aquele sorriso! – Ivã!!! – chamou-me alegre. – Eu estava agoniada sem você por tanto... – Ela parou de falar assim que Charlie surgiu ao meu lado.
- Oi Sarah. – disse ele sorrindo à minha esquerda.
- Ah... Oi. Como... Como chegaram aqui?
- A senhora Coppais nos mandou consertar o telhado, soube do que aconteceu ontem à noite no quarto do outro lado? – Charlie respondeu.
- Sim, ela me contou hoje quando me acordou. Não é meio perigoso ai?
- Oras... Meninos travessos aprendem a se virar. – Ele piscou e ela riu.
- Acha que consegue subir aqui, Sarah? – eu disse meio que tentando interromper os dois. E ela pareceu ter me notado novamente.
- Não sei. – Ela olhou para os lados a procura de algo – Talvez... Talvez se eu puder essa cadeira em cima da cama...
Ela pegou a cadeira da penteadeira e arrastou o colchão da cama para por a cadeira ali. Subiu na cadeira e se pôs nas pontas dos pés esticando os braços, suas mãos ultrapassavam um pouco o telhado, era o suficiente para que nós a puxássemos para cima. E foi o que fizemos. Sarah não era pesada, mas não foi fácil, tomamos o cuidado de tentar não fazer muito barulho, por fim, ela conseguiu se sustentar na beirada do buraco que abrimos e assim nós terminamos de puxá-la pela cintura com algumas palavras de reprovação, mas ela mesma entendeu que não tinha outro jeito.
Ela sentou-se ao meu lado, fiquei entre ela e Charlie. Lá ficamos até recuperarmos o fôlego pelo esforço, eu evitava olhar para ela, continuava meio envergonhado. Do telhado víamos a copa das árvores mais altas, e por detrás delas as montanhas nos cercavam por todos os lados, víamos o caminho do rio de águas claras e sentíamos o vento batendo em nosso rosto suado, o sol estava quente, mas agradável. Senti que podia ficar ali para sempre e sorri feliz por Sarah estar ao meu lado. Ela pegou minha mão.
- Isso foi bem legal! É muito bonito aqui em cima, não acha? – disse ela sorrindo e me encarando, sorri e acenei em resposta. Ela desviou o olhar pra Charlie e riu. – Agora já sabemos como fazer aquele passeio noturno.

Capítulo 4

- Admita Sarah, não consegue ser sedutora! – disse eu risonho.
Era a época mais feliz de minha vida. Estávamos lá, como fazíamos todas as tardes que podíamos, eu e Sarah, escondidos atrás de um grande arbusto de pequenas folhas muito verdes. Ficávamos segredando conversas sobre todos tipos de assunto enquanto as folhas nos acobertavam de olhares e ouvidos repressores. Eu em meus 15 anos tinha agora um nariz anormalmente grande. Ela acabara de completar 14 e estava inconformada com as palavras que eu acabara de dizer, era sempre assim, espontânea demais comigo, era minha melhor amiga e eu o dela, pelo menos era o que ela dizia, ela era mais amiga que Charlie e Thomas, com quem sempre conversei, ela era mais.
Quando completamos nosso primeiro mês naquela casa, já tínhamos certeza que a criança de Bianca era uma garota. Thomas, Charlie e eu então fizemos de tudo para conhecê-la e alguns meses depois o padre Fixar tinha decidido que ela viveria como uma criança normal e que era injusto mantê-la prisioneira de seu próprio quarto, é claro, nós demos uma pequena ajuda para esse pensamento, embora a Senhora Coppais fosse sempre irredutível e não concordasse, ela acabou cedendo que Sarah conhecesse seus inquilinos e vice-versa.
A primeira vez que ela foi apresentada à nós estávamos sentados no chão da sala e o padre explicava a nós a situação, disse que ia nos apresentar a verdadeira dona da casa e que confiaria em nós para nos comportássemos da melhor maneira possível. Foi até bem rápido, a senhora Coppais à trouxe, uma menininha linda de rosto redondo, cabelos negros e olhos claros, todos à cumprimentaram e ela nos cumprimentou. Adoráveis minutos em que eu a vi de perto pela primeira vez, ela nem tinha me notado, eu estava sentado no meio dos garotos, realmente não chamava muita atenção. Mas ela notou Charlie, acho que ele chegou atrasado com esse propósito, tinha ido buscar Alfie no estábulo, mas havia demorado mais do que o convencional, ela estava quase indo embora quando ele surgiu pela porta fazendo barulho. Charlie parecia sempre pensar em tudo, ou ao menos eu pensava que ele planejava tudo, sempre no lugar certo, na hora certa, ele sabia chamar atenção sem parecer querer isso. Eu o invejava, lutava contra isso, mas sim, eu o invejava.
Comecei a tomar mais contato com Sarah quando a Sra. Coppais ficou doente. Nessa época ela já confiava em mim o suficiente. Ela se mudou pro quarto de Sarah, mas não podia cuidar dela, então me mandava levar e trazer refeições e o que mais fosse preciso. Confiava mais em mim do que no próprio Alfie, mas o único em que confiava inteiramente era o padre Fixar. Mas ela se arranjava com minha ajuda já que o padre tinha muitas coisas a fazer além de nos visitar.
Fiquei um pouco mais de uma semana levando e buscando bandejas, das vezes que a Sra. Coppais adormecia nós conversávamos, normalmente ela começava os diálogos, meu nome, como estava o dia lá fora, relatos dos meninos, como eram, como se chamavam. As vezes ela escrevia num livro, eu não sabia ler, muito menos escrever, essa foi uma das coisas que mais me encantou nela. Uma vez o padre tentou ensinar-nos a escrever, ia duas vezes por semana até a antiga casa de Alfie e lá nos ensinava, ou tentava, acabou desistindo por falta de interesse da nossa parte. Thomas e mais um garoto eram os únicos que davam atenção as aulas, eu e Charlie achávamos perda de tempo, embora na época não fossemos amigos. O resultado era que Thomas era o único de nós que sabia ler e escrever, às vezes o padre o trazia algo para ele praticar, normalmente passagens religiosas, algumas ele mesmo escrevia já que as passagens eram em latim e já era suficientemente difícil ler, ler em outra língua era demais para qualquer um de nós. Soube eu que ele também levava passagens para Sarah, o latim dela era razoavelmente bom. Eu me arrependi muito de não ter dado importância à aquilo quando vi Sarah escrevendo, ela me contou que tinha sido o padre que a tinha ensinado e que ela estava escrevendo relatos da sua história, mas eu não poderia ver, ninguém podia além dela. A senhora Coppais não sabia, embora se soubesse não faria muita diferença, pelo que Sarah tinha dito ela também não sabia ler.
Quando a senhora Coppais melhorou, eu bem queria que não tivesse melhorado, eu passei a não ver Sarah novamente. Foi quando ela começou a usar sua persuasão, implorava para o padre que a liberasse para conviver conosco uma vez por semana, o padre sempre foi muito gentil e não resistia aos pedidos de uma garotinha prisioneira por isso acabou liberando, mas teria que estar sempre acompanhada. Mesmo com esse ultimo item a senhora Coppais estava inconformada e quando Sarah saia do quarto o tempo fechava para a Sra. Coppais, tudo era motivo de reclamações e castigos.
Com o tempo Sarah passou a sair duas ou três vezes por semana, algumas andava a cavalo, era um dos seus passatempos preferidos, outras vezes se juntava a nós para ouvir histórias de Alfie, mas as melhores histórias ela perdia, pois com a Sra. Coppais por perto Alfie não se arriscava a contar histórias encantadas. Sarah só conversava conosco quando os ouvidos da Sra. Coppais estava razoavelmente longe ou quando ela estava aos cuidados do padre Fixar, às vezes ela sumia da vista dos dois e quando a Sra. Coppais notava ela ficava mais de uma semana sem nos ver. Até o padre convencê-la a liberar Sarah novamente. Sarah queria cada vez mais liberdade, não sabia como era privilegiada por ter um pouco dela.
Sarah nunca se conformava, tinha um espírito aventureiro como poucos, as histórias de Alfie as inspiravam muitas vezes, as histórias de aventura eram as suas preferidas, principalmente quando envolviam algum romance, romances proibidos, ela os adorava. A Sra. Coppais, por sua vez, as detestava, às vezes interrompia a história ou levava Sarah pro quarto quando começava uma parte que a desagradava, ela e Alfie não se davam muito bem, embora convivessem sem maiores problemas, o padre era quem realmente mandava naquela casa, diga-se de passagem, na aldeia também, intermediando as discussões e chegando a um acordo.
Conforme a liberdade de Sarah foi crescendo ela foi tornando-se minha melhor amiga, afinal eu era o preferido da Senhora Coppais, sempre prestativo e educado, interesseiro também, não nego, fazia isso sempre para poder ficar o mais perto possível de Sarah e após conquistar a confiança da velha Coppais, eu era a melhor pessoa que ela indicaria para ser amigo de Sarah, e mesmo assim ela estava sempre atenta a nós.
- Eu sei ser sedutora quando quero!
Ela era sedutora mesmo sem perceber, a verdade era que Sarah já tinha me conquistado há muito tempo, e não só por ser uma garota, como a menina da aldeia de anos atrás, eu estava completamente apaixonado! Por anos e anos, por dias e dias, e em todas horas, parecia que eu não pensava em mais nada. E ao mesmo tempo em que comigo ela era tão natural eu sempre era receoso quando estava com ela, embora não demonstrasse. Tinha me tornado a melhor pessoa para esconder sentimentos. Agora não me faz sentido porque eu os escondia dela, mas acho que eu tinha medo de contar o quanto ela me era importante. Eu procurava irritá-la e desprezá-la às vezes e ela me retribuía da mesma forma o que para mim era terrível, no entanto nem eu nem ela conseguíamos ficar zangados um com outro por mais de umas horas. Eu já tinha me acostumado com sua voz zombeira e sempre inconformada, com aqueles grandes, doces e penetrantes olhos azuis, a pele branca como inverno e quente como verão e seus sedosos cabelos negros, o jeito sempre em metamorfose, mas sempre aquele mesmo jeito pelo qual eu me apaixonara e do qual não me imaginara sem.
- E como sabe, eim? Já seduziu alguém? – respondi.
Eu realmente esperava que não, embora soubesse que era inevitável que outros se apaixonarem por ela, embora eles não fossem amá-la tanto quanto eu a amava, isso era impossível. Eu tinha medo que ela chegasse perto de mais algum garoto, até mesmo Charlie e Thomas, principalmente Charlie. E é claro que ela tinha me seduzido, mas eu não a deixaria descobrir, não era confiante em mim o suficiente, mesmo que perto dela eu bancasse o superior.
- Não deve ser difícil, ser uma mulher já é meio caminho andado. – disse-me com aquele sorrisinho irônico. O sol quer penetrava entre as folhas do arbusto que nos escondia iluminava seu rosto, eu não cansava de admirá-lo, mas tinha que continuar com nossa pequena encenação para nós mesmos.
- Mulher? É apenas uma garotinha! – Zombei tentando desafiá-la, dizendo sem palavras, “Mostre-me que é mulher!”.
- Há! – riu-se tentando demonstrar que eu-não-sabia-de-nada, mas eu percebi que ela não estava segura de si também, era um teste, ela sabia, eu a estava testando e ela ia me testar também.
- Nem mesmo parece uma garotinha, - provoquei - age mais como um menino! É pior que Charlie e Tho...
- Cala-te! – ordenou-me com uma autoridade que me surpreendeu, mas de um jeito doce, quase um pedido, ela me encarava. – Cala-te... E dê-me um beijo.
E uma corrente de pensamentos irrompeu numa corrente incoerente. Fora mais rápido do que eu pensara, não estava preparado. Parei. Gelei. E o meu coração disparou. Havia um frio no meu estômago. De meu corpo subiam labaredas de calor que me dominavam, acho que corei. Meus pensamentos ficaram ausentes.
- Quer mesmo um beijo? – E com isso eu dizia, QUEIRA um beijo!
- Dar-me-ai um beijo? – Ela agora estava falando daquele modo cortes e complicado típico dos nobres que a ensinavam e que eu ainda não entendia bem, mas me encarava e sua boca não tinha se fechado totalmente, ela queria um beijo!
- Dar-te-ia tudo que me pedisse. – Arrisquei, me pareceu bom, mas minha voz tinha um ar de imploração, Peça-me um beijo!
- Deu-me então, tudo que eu sempre quis. – O que? Eu não tinha entendido, era confuso! Confuso! Completamente confuso, então eu interpretei da maneira que conseguia, da maneira que eu conseguia raciocinar, eu nem mesmo conseguia raciocinar! Da maneira que melhor me convinha. Eu a beijei.
Fechei meus olhos e deixei meus lábios encontrarem os dela, e só pensei naquilo, e um turbilhão de emoções me vieram e eu me concentrava só naquele beijo, naquela pressão sobre meus lábios, o resto eu não me importava, o resto, não existia. Uma onda gelada atravessava meu estômago devagar. Permaneci ali até que o fôlego me faltou, eu até mesmo me esqueci de respirar. Não tinha durado nem 1 minuto, mas foi o 1 minuto mais longo da minha vida. Afastei-me, ainda com os olhos fechados e ofegando devagar, com o coração explodindo em minha boca, eu sentia minhas pulsações por todo corpo, eu ouvia minha respiração em sincronia com a de Sarah, eu sentia o calor dela. Ela era mulher do jeito que eu nunca imaginara uma mulher, era mais do que eu jamais imaginara.
E quando abri os olhos ela ainda estava lá, de olhos fechados, de joelhos na grama a poucos centímetros de mim, com o rosto sereno e feliz, uma brisa balançava seus cabelos, eu queria beijá-la novamente. Tinha que beijá-la novamente. Ia fazer exatamente isso quando aqueles olhos azuis me encararam novamente, doces e ingênuos. Eu não soube o que fazer, eu não conseguia pensar. E em um instante o rosto sereno em ingênuo ganhou uma aparência zombeira, era a Sarah minha amiga de volta e ela me disse: Eu disse que sabia ser sedutora!

Capítulo 3

Desde quando vim para a casa de Alfie, poucos saíram e muitos entraram, era difícil dizer se ele conseguiria manter o lugar por mais uma semana. Agora fazia dois anos que eu estava lá e sabia como as coisas funcionavam, quando ficava muito lotado, os mais velhos tinham que partir, embora Alfie fizesse de tudo para manter-nos lá pelo menos até os 16 anos, que ele considerava ideal para nos liberar. O padre Fixar nos dava certa quantia em dinheiro, quando o possuía, algo que desse pra comprar uma vaquinha magra ou algo do tipo.
Depois da missa de domingo enquanto voltávamos caminhando para casa com os outros garotos, notamos que Alfie ficou pra traz, parecia discutir sobre algo importante com o padre. E naquela noite ele reuniu todos os meninos na sala, sentou em seu banquinho tri-pé de madeira e nos disse que já não dava mais. Não conseguiria manter-nos num lugar tão pequeno e que a partir do dia seguinte iríamos ter que nos mudar.
- Mas não se preocupem, - disse ele, ironicamente, com um sorriso preocupado – eu irei com vocês. Sabem, a um casarão perfeito fora dos muros da cidade, um pouco afastado. Lá tem muito espaço.
Um falatório incompreensível começou. Alguns garotos reclamaram, outros queriam saber mais... Eu estava completamente inconformado! Sair daquele lugar? Aquela era minha casa! O lugar que eu mais estava à vontade no mundo! Logo agora que estava tudo indo tão bem... A raiva parecia apertar meu peito de tal forma que me sufocava, mas por fora lá estava eu... Inexpressivo, impassível... Ao meu lado Charlie reclamava muito e eu me sentia como ele.
- Por que raios vamos mudar? Eu gosto daqui! Não quero ir, eu não vou!
- Quieto, Alfie está tentando falar! – Thomas o advertiu, parecia mais severo, parecia mais maduro, nos revelou outra face sua.
E quando os garotos se calaram Alfie pareceu zangado, mas melancólico, ele também não queria ir, isso eu entendia, ele precisava ir conosco, por que nos amava mais do que seu próprio lar.
- Nós vamos embora amanhã, não tenho como mudar isso. Quero que peguem o que lhes pertence e amanhã vocês me ajudaram a levar tudo para a nova casa. Acreditem, vão gostar de lá. Eu mesmo olhei o lugar, é bonito.
A minha volta, vi os rostos tristonhos de meus colegas, era triste pra todos nós, menos para os mais recentes ali, para eles não fazia muita diferença, os mais novos também não se incomodavam. Charlie já tinha se acalmado, suas expressões mudaram e ele deu um pequeno sorriso dizendo:
- Então... Que tal uma última história em frente ao forno em Alfie?
E de todas as coisas que qualquer um poderia ter dito, Charlie falou a melhor. Naquela sala, todos sentados pela última vez em frente ao forno de lenha que nos aquecia e libertava suas mentes, lá todos nos esquecíamos dos nossos problemas. Alfie sorriu animado e moveu seu banquinho tri-pé colocando-o em frente ao fogo. E como sempre, sua voz grossa ganhou um tom de mistério e magia que nos deixava em transe, ele nos lançou um sorriso de lado e seus olhos negros e pequenos brilhavam.
- Sei a história perfeita pra vocês... – e narrou - “Quando ainda existiam muitas mulheres por aqui, uma moça, não tinha como criar sua pequena criança. Certo dia, ela soube de um lugar encantado, onde o povo das fadas habitava. Em busca desse lugar, ela andou 27 dias, dias em que ela quase não se alimentou, só parando para cuidar de sua pequena filha, seu marido, a pouco tinha morrido, e ela estava só. No final do 27 dia, ela sentou as margens de um rio, mal sabia que aquele era o lugar. O lugar que viera procurando. As águas do rio eram calmas e faziam um som ritmado e agradável. Não foi preciso dizer nada, o povo das fadas veio até ela, e lhe levaram a linda menininha, que mal tinha um ano, a mulher então, tendo cumprido sua missão, adormeceu a margem do rio, para nunca mais acordar.
A Menina cresceu e foi criada ao modo do povo das fadas que valorizava muito a vida, seja ela de um lobo ou de uma pequena borboleta, lá lhe ensinaram os segredos das florestas, o poder curativo das plantas e a adoração à Grande Mãe. Já mulher, Bianca conheceu um rapaz, e eles foram amantes, mas era proibido, pois o rapaz era romano. O povo das fadas por muito tempo tinha sido massacrado pelos romanos, eles os exilaram para as florestas, expulsando-os dos campos, vales e montanhas onde também habitavam, proibindo suas crenças e profanando seus costumes. No entanto Bianca sabia, aquele romano era diferente e se casou com ele ao modo dos romanos, adequando-se também à sua religião, como deveria ser, na cultura romana.
Quando o povo das fadas soube jurou vingança ao romano que tinha desposado uma de suas mais queridas mulheres, eles achavam que ele a havia obrigado a tal coisa. No 27º dia do casamento de Bianca Aêrrok, seu marido tinha saído, convocado pelas tropas, mas ele não chegou até elas e também não voltou mais, ela sabia que era obra do povo das fadas. Com a raiva consumindo se peito, invadindo sua mente, ela travou uma imensa discussão com o povo que outrora haviam-na acolhido. Revoltado o povo das fadas lançaram um feitiço aos humanos dessa região, que visava nunca mais permitir que nascessem meninas desde aquela data, a não ser por casais que estivessem num romance sincero.
Bianca começou a adoecer depois da morte de seu amado esposo, mas tinha algo para que viver, aquele não era seu momento, Bianca valorizava tanto a vida, que mesmo em beira a morte juntou esforços para dar a luz a uma pequena criança, num dia chuvoso como o de ontem. Da criança ela cuidou, com a ajuda de uma criada, uma velhinha magra em quem ela confiava inteiramente. Quando a criança fez nove anos, Bianca pediu para ser levada a margem do rio, lá, ela mandou que doassem sua mansão as crianças que não tinham lar, deixou a filha aos cuidados da criada e do padre e então, despediu-se do mundo.”
Ele se levantou de sua cadeira e como um baque nós saímos do transe meio confusos.
- Como essa foi à história perfeita pra nós? Nunca nos contou história tão melancólica e triste. Ela merece um final melhor! – disse um garoto um pouco mais velho que eu.
Alfie encarou o menino que tinha falado.
- Meus pequenos, o final dessa história está em nossas mãos, pois estamos dentro dela meus caros, - dirigiu-nos um sorriso - Bianca Aêrrok acaba de deixar sua casa pra nós e é pra lá que estamos indo amanhã.

As carroças lotadas de meninos e seus pertences rodavam lentamente pela larga estrada de terra, fora dos muros da aldeia, em um ritmo gostoso, que deixava a vontade aqueles que queriam logo conhecer o novo lar, esses iam sorrindo correndo ao lado das carroças, as vezes cutucando os bois com varas para irem mais depressa, e também agradava aqueles que queriam voltar, como eu e Charlie, que logo agora tínhamos encontrado uma fascinante aventura para as noites. Thomas parecia indiferente, só queria estar conosco, mas ainda mantinha certa precaução com Charlie desde a discussão.
Do lado direito da estrada, a densa floresta tampava nossa visão, as árvores eram grandes e velhas lá dentro, mas as margens eram de árvores ralas de fácil corte, mas ninguém se atreveria a cortá-las. Alfie nos levara ali certa vez para um piquenique, mas ficamos na outra margem, um campo de capim alto, na época estava verde com muitas flores, hoje ele estava seco, naquela margem tinham algumas árvores, nenhuma tão imponente quanto a margem oposta. A floresta era a imagem viva das histórias de Alfie, mágica e majestosa, exalava um cheio de madeira velha, um ar denso vinha de lá quando o vento batia sobre as árvores.
Aproximava-se uma mansão, feita de pedra, tinha grandes janelas e uma torre média, um magnífico jardim. Era cercada por um baixo muro, também feito de pedra. Os garotos gritaram ao se aproximar, mas não era a nossa casa. O padre vinha conosco, ele pediu que esperássemos. Ele foi falar algo com alguém na casa, era um homem alto cabeludo e barbudo, usava uma roupa muito formal, parecia deveras muito importante. Um garoto saiu correndo da casa, deveria ser menor que Thomas um pouco. Cumprimentou o padre e correu pelos jardins em nossa direção quando surgiu um novo garoto, este por sua vez era mais velho que eu, parecia tem seus 18 ou 19 anos. Pareceu não gostar daqueles garotos, ou melhor, de nós. Olhava-nos com desprezo, veio em nossa direção junto com o eclesiástico e o Senhor que deveria ser seu pai.
- Estes são os garotos que irão à mansão dos Aêrrok padre? – perguntou o Senhor.
- Sim, os mesmos, Senhor.
Vi que o garoto dizia algo de reprovação ao pai, enquanto isso o menininho se esforçava para nos observar por traz do muro curioso. Eu permanecia sentado na carroça do meio de outras duas em fila. Ao meu lado Charlie e depois dele Thomas.
- Não gosto nada desses pomposos ai. – sussurrou a nós Charlie
- Não vejo mal no garotinho – comentou Thomas
- Espere-o crescer Thomas – alertei eu em tom descontraído, eu nunca dei muita atenção a esse tipo de gente, eram fúteis, desinteressantes, via-se que se achavam superiores, como eu os achava ridículos. O Homem veio em nossa direção, avaliou-nos com seus olhos apertados.
- Não acho que seja adequado que eles vivam na mansão meu caro padre. A criança, ainda mora lá certamente.
- Sim, e continuará morando. – disse o padre severo. – Sra. Aêrrok deixou-nos bem esclarecido, que queria que sua... criança crescesse com as demais.
O homem pareceu inconformado – A duquesa deveria estar delirando, ela estava muito doente padre. Não é como as outras crianças a dela.
- Não importa, foi o último desejo dela. Assim será.

Meu grupo estava curioso, descemos da carroça e nos aproximamos para observar melhor. O homem continuou a tentar mudar a idéia do padre, mas de nada adiantou.
- Me garanta! – implorou por fim – Me garanta que nenhum deles chegará perto.
O padre o encarou severo – Ela está segura aos meus cuidados Duque Kyout não me importune mais com isso.
Por fim o padre abençoou-o e voltou às carroças para que pudéssemos prosseguir. Partimos, sedentos de curiosidade, o que esse garoto tinha afinal? Será que era meio monstro? Será que o povo das fadas o tinha feito ficar horrendo? O que ele tinha de tão ruim? Seria adoentada ou enferma? Ou será que o Duque sei-lá-das-quantas tinha tanto medo de nós que achava-nos capazes de atacar um garoto sem mais nem menos?
Thomas tinha as piores teorias, achava que o menino devia ser um corcunda caolho, ou uma versão masculina da medusa, ou tão belo que nós o invejaríamos tanto que o mataríamos. Charlie pensava em coisas mais sensatas, algumas interessantes do tipo “O garoto deve ter muito ouro, talvez se vista com ele. Vai ver o Duque tenha medo de nós o roubarmos.”. E sempre terminava com “Mas é só uma hipótese.”. O fato era que agora sim, aquele novo lar parecia-nos interessante.
Alguns garotos também ouviram o Duque, estavam mergulhados em suas mais loucas fantasias criativas como nós, alguns a exclamavam em voz alta, mas sempre longe do padre que não se agradou nada quando o primeiro fez isso. Alfie ria de nós, ah... Ele sim sabia. Vi isso em seus brincalhões olhos de besouros. Invejei-o por aquilo, rindo de nossas teorias, sei que a maioria era ridícula, mesmo assim, não conseguíamos pensar em nada melhor.
Não haviam muitas moradas fora dos muros da aldeia, tinham 1 ou 2 pequenas fazendas, mas era só. A mansão parecia não chegar nunca, até que viramos, saindo da trilha principal, parecendo entrar pela mata, numa trilha fina, a copa das árvores se entrelaçava por sobre nossas cabeças bem ao alto, lá era úmido e frio, deu-me calafrios. Não era tão criança para sentir medo, lutava contra ele, mas as histórias de Alfie nunca me ajudaram nisso. Os outros garotos também eram receosos, por toda passada pela floresta eles se calaram e se agruparam nas carroças. Meio quilometro de floresta e ouvimos ao longe o agradável som de um rio, começava a abrir uma clareira muito extensa iluminada pelo sol quente e depois se acabava a floresta.
Lá estava a mansão, ao contrário das que eu estava acostumado ela era, na maior parte feita de madeira, não tinha muros e nem uma torre. O jardim parecia mal cuidado e tinha uma baia com alguns cavalos. A mansão era grande, dois andares somente, mas muito ampla, a madeira das paredes começava a se decompor, estava gasta e em algumas partes tinham enormes rachaduras. No entanto, era uma bela moradia, devia ser linda em seus prósperos dias e o mais importante, tinha espaço para todos. Alfie comentou algo sobre, fazer uma grande reforma em que todos garotos ajudariam, agora passávamos dos 20.

As três carroças pararam à soleira da grande porta, descemos enquanto admirávamos nossa nova casa, não parecia má de se viver. Alguns garotos exploravam o quintal, mas ninguém tinha decidido entrar, o padre Fixar entrou, mas ninguém o seguiu. Voltou em pouco menos de 5 minutos enquanto checávamos a baia dos cavalos, onde tinham dois desses magníficos animais e um asno. Ao lado do padre tinha uma velha senhora, lembro-me dela na história de Alfie, a criada magra, mas cruzes, como era feia, corcunda de olhos apertados e perto do padre ficava ainda mais baixinha, devia ter quase 50 anos, uma aura de morte pairava sobre ela, achamos que ela não viveria por mais muito tempo.
Ela nos olhou inquieta, parecia falar sem parar, chacoalhava os braços e todas as direções. O padre levou as mãos ao rosto cobrindo a face, parecia que a coisa não estava indo lá muito bem. Ele pos a sua mão em um dos ombros da criada, encarando-a e começou a falar, seja lá o que ele disse parecia ter funcionado. A velha confirmou algo com a cabeça e entrou, o padre então chamou os garotos. Eu, Charlie e Thomas que ainda estávamos na carroça descemos pulando para a grama infestadas de ervas daninhas.
Alfie reuniu-nos e fez 2 filas, pedindo a toda hora que nos comportássemos como os anjos do Senhor, fui no fim da fila direita com Charlie e Thomas, estava com um certo frio na barriga de quem vai enfrentar algo que ao mesmo tempo que acha bom, acha que algo vai dar errado. Aquele garoto que o Duque citou não ajudava em nada a me confortar. Assim que estávamos à postos Alfie foi para o começo das filas e segurou as mãos dos dois garotos da frente, soltou um longo suspiro e nos guiou até a casa.
Quando passamos pela porta, meu coração já acalmara, estávamos numa sala muito ampla e alinhada, feita em sua maior parte de madeira, tinha um grande tapete em cores escuras sobre o chão de pedra, o teto era alto e em cima de nós víamos o segundo andar de meio oco onde as paredes continuavam até o teto sem se encontrarem com ele. A minha direita e a minha esquerda tinham duas escadas que levavam a passarelas encostadas à parede, das passarelas podia-se chegar à várias portas ligadas a parede como um extenso corredor suspenso. A sala não tinha muitos móveis, tinha uma cômoda com sobre ela um castiçal e alguns velhos sofás rústicos a sala era iluminada por algumas velas em castiçais nas paredes e duas grandes janelas na parede do fundo.
Mandaram-nos sentar no chão e nos apresentaram a Sra Coppais, a criada, e enquanto estávamos sentados no chão frio, ela citava as regras da casa, onde dormiríamos, onde não poderíamos ir e o que teríamos que fazer para manter a paz naquele lugar. Ela tinha uma voz irritantemente fina e surpreendentemente baixa o que nos obrigava a fazer um silêncio mortal e prestar a máxima atenção. Ela não falava nada que Alfie já não tivesse nos alertado, por esse motivo eu, que sentava no fundo, era um daqueles que fingia prestar atenção, mas tinha os pensamentos voltados para a sala a minha volta, mas além de mim, creio que ninguém tenha visto a porta do andar acima abrir e olhos brilhantes espiarem pela fresta, só eu vi, mas ninguém. Foi então que entendi, a criança não era um garoto.