Capítulo 3

Desde quando vim para a casa de Alfie, poucos saíram e muitos entraram, era difícil dizer se ele conseguiria manter o lugar por mais uma semana. Agora fazia dois anos que eu estava lá e sabia como as coisas funcionavam, quando ficava muito lotado, os mais velhos tinham que partir, embora Alfie fizesse de tudo para manter-nos lá pelo menos até os 16 anos, que ele considerava ideal para nos liberar. O padre Fixar nos dava certa quantia em dinheiro, quando o possuía, algo que desse pra comprar uma vaquinha magra ou algo do tipo.
Depois da missa de domingo enquanto voltávamos caminhando para casa com os outros garotos, notamos que Alfie ficou pra traz, parecia discutir sobre algo importante com o padre. E naquela noite ele reuniu todos os meninos na sala, sentou em seu banquinho tri-pé de madeira e nos disse que já não dava mais. Não conseguiria manter-nos num lugar tão pequeno e que a partir do dia seguinte iríamos ter que nos mudar.
- Mas não se preocupem, - disse ele, ironicamente, com um sorriso preocupado – eu irei com vocês. Sabem, a um casarão perfeito fora dos muros da cidade, um pouco afastado. Lá tem muito espaço.
Um falatório incompreensível começou. Alguns garotos reclamaram, outros queriam saber mais... Eu estava completamente inconformado! Sair daquele lugar? Aquela era minha casa! O lugar que eu mais estava à vontade no mundo! Logo agora que estava tudo indo tão bem... A raiva parecia apertar meu peito de tal forma que me sufocava, mas por fora lá estava eu... Inexpressivo, impassível... Ao meu lado Charlie reclamava muito e eu me sentia como ele.
- Por que raios vamos mudar? Eu gosto daqui! Não quero ir, eu não vou!
- Quieto, Alfie está tentando falar! – Thomas o advertiu, parecia mais severo, parecia mais maduro, nos revelou outra face sua.
E quando os garotos se calaram Alfie pareceu zangado, mas melancólico, ele também não queria ir, isso eu entendia, ele precisava ir conosco, por que nos amava mais do que seu próprio lar.
- Nós vamos embora amanhã, não tenho como mudar isso. Quero que peguem o que lhes pertence e amanhã vocês me ajudaram a levar tudo para a nova casa. Acreditem, vão gostar de lá. Eu mesmo olhei o lugar, é bonito.
A minha volta, vi os rostos tristonhos de meus colegas, era triste pra todos nós, menos para os mais recentes ali, para eles não fazia muita diferença, os mais novos também não se incomodavam. Charlie já tinha se acalmado, suas expressões mudaram e ele deu um pequeno sorriso dizendo:
- Então... Que tal uma última história em frente ao forno em Alfie?
E de todas as coisas que qualquer um poderia ter dito, Charlie falou a melhor. Naquela sala, todos sentados pela última vez em frente ao forno de lenha que nos aquecia e libertava suas mentes, lá todos nos esquecíamos dos nossos problemas. Alfie sorriu animado e moveu seu banquinho tri-pé colocando-o em frente ao fogo. E como sempre, sua voz grossa ganhou um tom de mistério e magia que nos deixava em transe, ele nos lançou um sorriso de lado e seus olhos negros e pequenos brilhavam.
- Sei a história perfeita pra vocês... – e narrou - “Quando ainda existiam muitas mulheres por aqui, uma moça, não tinha como criar sua pequena criança. Certo dia, ela soube de um lugar encantado, onde o povo das fadas habitava. Em busca desse lugar, ela andou 27 dias, dias em que ela quase não se alimentou, só parando para cuidar de sua pequena filha, seu marido, a pouco tinha morrido, e ela estava só. No final do 27 dia, ela sentou as margens de um rio, mal sabia que aquele era o lugar. O lugar que viera procurando. As águas do rio eram calmas e faziam um som ritmado e agradável. Não foi preciso dizer nada, o povo das fadas veio até ela, e lhe levaram a linda menininha, que mal tinha um ano, a mulher então, tendo cumprido sua missão, adormeceu a margem do rio, para nunca mais acordar.
A Menina cresceu e foi criada ao modo do povo das fadas que valorizava muito a vida, seja ela de um lobo ou de uma pequena borboleta, lá lhe ensinaram os segredos das florestas, o poder curativo das plantas e a adoração à Grande Mãe. Já mulher, Bianca conheceu um rapaz, e eles foram amantes, mas era proibido, pois o rapaz era romano. O povo das fadas por muito tempo tinha sido massacrado pelos romanos, eles os exilaram para as florestas, expulsando-os dos campos, vales e montanhas onde também habitavam, proibindo suas crenças e profanando seus costumes. No entanto Bianca sabia, aquele romano era diferente e se casou com ele ao modo dos romanos, adequando-se também à sua religião, como deveria ser, na cultura romana.
Quando o povo das fadas soube jurou vingança ao romano que tinha desposado uma de suas mais queridas mulheres, eles achavam que ele a havia obrigado a tal coisa. No 27º dia do casamento de Bianca Aêrrok, seu marido tinha saído, convocado pelas tropas, mas ele não chegou até elas e também não voltou mais, ela sabia que era obra do povo das fadas. Com a raiva consumindo se peito, invadindo sua mente, ela travou uma imensa discussão com o povo que outrora haviam-na acolhido. Revoltado o povo das fadas lançaram um feitiço aos humanos dessa região, que visava nunca mais permitir que nascessem meninas desde aquela data, a não ser por casais que estivessem num romance sincero.
Bianca começou a adoecer depois da morte de seu amado esposo, mas tinha algo para que viver, aquele não era seu momento, Bianca valorizava tanto a vida, que mesmo em beira a morte juntou esforços para dar a luz a uma pequena criança, num dia chuvoso como o de ontem. Da criança ela cuidou, com a ajuda de uma criada, uma velhinha magra em quem ela confiava inteiramente. Quando a criança fez nove anos, Bianca pediu para ser levada a margem do rio, lá, ela mandou que doassem sua mansão as crianças que não tinham lar, deixou a filha aos cuidados da criada e do padre e então, despediu-se do mundo.”
Ele se levantou de sua cadeira e como um baque nós saímos do transe meio confusos.
- Como essa foi à história perfeita pra nós? Nunca nos contou história tão melancólica e triste. Ela merece um final melhor! – disse um garoto um pouco mais velho que eu.
Alfie encarou o menino que tinha falado.
- Meus pequenos, o final dessa história está em nossas mãos, pois estamos dentro dela meus caros, - dirigiu-nos um sorriso - Bianca Aêrrok acaba de deixar sua casa pra nós e é pra lá que estamos indo amanhã.

As carroças lotadas de meninos e seus pertences rodavam lentamente pela larga estrada de terra, fora dos muros da aldeia, em um ritmo gostoso, que deixava a vontade aqueles que queriam logo conhecer o novo lar, esses iam sorrindo correndo ao lado das carroças, as vezes cutucando os bois com varas para irem mais depressa, e também agradava aqueles que queriam voltar, como eu e Charlie, que logo agora tínhamos encontrado uma fascinante aventura para as noites. Thomas parecia indiferente, só queria estar conosco, mas ainda mantinha certa precaução com Charlie desde a discussão.
Do lado direito da estrada, a densa floresta tampava nossa visão, as árvores eram grandes e velhas lá dentro, mas as margens eram de árvores ralas de fácil corte, mas ninguém se atreveria a cortá-las. Alfie nos levara ali certa vez para um piquenique, mas ficamos na outra margem, um campo de capim alto, na época estava verde com muitas flores, hoje ele estava seco, naquela margem tinham algumas árvores, nenhuma tão imponente quanto a margem oposta. A floresta era a imagem viva das histórias de Alfie, mágica e majestosa, exalava um cheio de madeira velha, um ar denso vinha de lá quando o vento batia sobre as árvores.
Aproximava-se uma mansão, feita de pedra, tinha grandes janelas e uma torre média, um magnífico jardim. Era cercada por um baixo muro, também feito de pedra. Os garotos gritaram ao se aproximar, mas não era a nossa casa. O padre vinha conosco, ele pediu que esperássemos. Ele foi falar algo com alguém na casa, era um homem alto cabeludo e barbudo, usava uma roupa muito formal, parecia deveras muito importante. Um garoto saiu correndo da casa, deveria ser menor que Thomas um pouco. Cumprimentou o padre e correu pelos jardins em nossa direção quando surgiu um novo garoto, este por sua vez era mais velho que eu, parecia tem seus 18 ou 19 anos. Pareceu não gostar daqueles garotos, ou melhor, de nós. Olhava-nos com desprezo, veio em nossa direção junto com o eclesiástico e o Senhor que deveria ser seu pai.
- Estes são os garotos que irão à mansão dos Aêrrok padre? – perguntou o Senhor.
- Sim, os mesmos, Senhor.
Vi que o garoto dizia algo de reprovação ao pai, enquanto isso o menininho se esforçava para nos observar por traz do muro curioso. Eu permanecia sentado na carroça do meio de outras duas em fila. Ao meu lado Charlie e depois dele Thomas.
- Não gosto nada desses pomposos ai. – sussurrou a nós Charlie
- Não vejo mal no garotinho – comentou Thomas
- Espere-o crescer Thomas – alertei eu em tom descontraído, eu nunca dei muita atenção a esse tipo de gente, eram fúteis, desinteressantes, via-se que se achavam superiores, como eu os achava ridículos. O Homem veio em nossa direção, avaliou-nos com seus olhos apertados.
- Não acho que seja adequado que eles vivam na mansão meu caro padre. A criança, ainda mora lá certamente.
- Sim, e continuará morando. – disse o padre severo. – Sra. Aêrrok deixou-nos bem esclarecido, que queria que sua... criança crescesse com as demais.
O homem pareceu inconformado – A duquesa deveria estar delirando, ela estava muito doente padre. Não é como as outras crianças a dela.
- Não importa, foi o último desejo dela. Assim será.

Meu grupo estava curioso, descemos da carroça e nos aproximamos para observar melhor. O homem continuou a tentar mudar a idéia do padre, mas de nada adiantou.
- Me garanta! – implorou por fim – Me garanta que nenhum deles chegará perto.
O padre o encarou severo – Ela está segura aos meus cuidados Duque Kyout não me importune mais com isso.
Por fim o padre abençoou-o e voltou às carroças para que pudéssemos prosseguir. Partimos, sedentos de curiosidade, o que esse garoto tinha afinal? Será que era meio monstro? Será que o povo das fadas o tinha feito ficar horrendo? O que ele tinha de tão ruim? Seria adoentada ou enferma? Ou será que o Duque sei-lá-das-quantas tinha tanto medo de nós que achava-nos capazes de atacar um garoto sem mais nem menos?
Thomas tinha as piores teorias, achava que o menino devia ser um corcunda caolho, ou uma versão masculina da medusa, ou tão belo que nós o invejaríamos tanto que o mataríamos. Charlie pensava em coisas mais sensatas, algumas interessantes do tipo “O garoto deve ter muito ouro, talvez se vista com ele. Vai ver o Duque tenha medo de nós o roubarmos.”. E sempre terminava com “Mas é só uma hipótese.”. O fato era que agora sim, aquele novo lar parecia-nos interessante.
Alguns garotos também ouviram o Duque, estavam mergulhados em suas mais loucas fantasias criativas como nós, alguns a exclamavam em voz alta, mas sempre longe do padre que não se agradou nada quando o primeiro fez isso. Alfie ria de nós, ah... Ele sim sabia. Vi isso em seus brincalhões olhos de besouros. Invejei-o por aquilo, rindo de nossas teorias, sei que a maioria era ridícula, mesmo assim, não conseguíamos pensar em nada melhor.
Não haviam muitas moradas fora dos muros da aldeia, tinham 1 ou 2 pequenas fazendas, mas era só. A mansão parecia não chegar nunca, até que viramos, saindo da trilha principal, parecendo entrar pela mata, numa trilha fina, a copa das árvores se entrelaçava por sobre nossas cabeças bem ao alto, lá era úmido e frio, deu-me calafrios. Não era tão criança para sentir medo, lutava contra ele, mas as histórias de Alfie nunca me ajudaram nisso. Os outros garotos também eram receosos, por toda passada pela floresta eles se calaram e se agruparam nas carroças. Meio quilometro de floresta e ouvimos ao longe o agradável som de um rio, começava a abrir uma clareira muito extensa iluminada pelo sol quente e depois se acabava a floresta.
Lá estava a mansão, ao contrário das que eu estava acostumado ela era, na maior parte feita de madeira, não tinha muros e nem uma torre. O jardim parecia mal cuidado e tinha uma baia com alguns cavalos. A mansão era grande, dois andares somente, mas muito ampla, a madeira das paredes começava a se decompor, estava gasta e em algumas partes tinham enormes rachaduras. No entanto, era uma bela moradia, devia ser linda em seus prósperos dias e o mais importante, tinha espaço para todos. Alfie comentou algo sobre, fazer uma grande reforma em que todos garotos ajudariam, agora passávamos dos 20.

As três carroças pararam à soleira da grande porta, descemos enquanto admirávamos nossa nova casa, não parecia má de se viver. Alguns garotos exploravam o quintal, mas ninguém tinha decidido entrar, o padre Fixar entrou, mas ninguém o seguiu. Voltou em pouco menos de 5 minutos enquanto checávamos a baia dos cavalos, onde tinham dois desses magníficos animais e um asno. Ao lado do padre tinha uma velha senhora, lembro-me dela na história de Alfie, a criada magra, mas cruzes, como era feia, corcunda de olhos apertados e perto do padre ficava ainda mais baixinha, devia ter quase 50 anos, uma aura de morte pairava sobre ela, achamos que ela não viveria por mais muito tempo.
Ela nos olhou inquieta, parecia falar sem parar, chacoalhava os braços e todas as direções. O padre levou as mãos ao rosto cobrindo a face, parecia que a coisa não estava indo lá muito bem. Ele pos a sua mão em um dos ombros da criada, encarando-a e começou a falar, seja lá o que ele disse parecia ter funcionado. A velha confirmou algo com a cabeça e entrou, o padre então chamou os garotos. Eu, Charlie e Thomas que ainda estávamos na carroça descemos pulando para a grama infestadas de ervas daninhas.
Alfie reuniu-nos e fez 2 filas, pedindo a toda hora que nos comportássemos como os anjos do Senhor, fui no fim da fila direita com Charlie e Thomas, estava com um certo frio na barriga de quem vai enfrentar algo que ao mesmo tempo que acha bom, acha que algo vai dar errado. Aquele garoto que o Duque citou não ajudava em nada a me confortar. Assim que estávamos à postos Alfie foi para o começo das filas e segurou as mãos dos dois garotos da frente, soltou um longo suspiro e nos guiou até a casa.
Quando passamos pela porta, meu coração já acalmara, estávamos numa sala muito ampla e alinhada, feita em sua maior parte de madeira, tinha um grande tapete em cores escuras sobre o chão de pedra, o teto era alto e em cima de nós víamos o segundo andar de meio oco onde as paredes continuavam até o teto sem se encontrarem com ele. A minha direita e a minha esquerda tinham duas escadas que levavam a passarelas encostadas à parede, das passarelas podia-se chegar à várias portas ligadas a parede como um extenso corredor suspenso. A sala não tinha muitos móveis, tinha uma cômoda com sobre ela um castiçal e alguns velhos sofás rústicos a sala era iluminada por algumas velas em castiçais nas paredes e duas grandes janelas na parede do fundo.
Mandaram-nos sentar no chão e nos apresentaram a Sra Coppais, a criada, e enquanto estávamos sentados no chão frio, ela citava as regras da casa, onde dormiríamos, onde não poderíamos ir e o que teríamos que fazer para manter a paz naquele lugar. Ela tinha uma voz irritantemente fina e surpreendentemente baixa o que nos obrigava a fazer um silêncio mortal e prestar a máxima atenção. Ela não falava nada que Alfie já não tivesse nos alertado, por esse motivo eu, que sentava no fundo, era um daqueles que fingia prestar atenção, mas tinha os pensamentos voltados para a sala a minha volta, mas além de mim, creio que ninguém tenha visto a porta do andar acima abrir e olhos brilhantes espiarem pela fresta, só eu vi, mas ninguém. Foi então que entendi, a criança não era um garoto.

Capítulo 2

A rua a noite era iluminada por algumas poucas tochas e naquela idade eu já conhecia a aldeia, ia com Alfie algumas vezes vender a lã das ovelhas ou trocar por alimento. Mas à noite a rua era diferente, com um ar sombrio. Fora dos muros, como eu já vira uma vez indo com um grupo procurar lenha, era uma floresta fechada repleta de ajoncs, turfeiras, sorbiers, alguns poucos carvalhos e urzes, que eram as minhas preferidas, principalmente as de flor branca. Da floresta Alfie contava lendas, duendes, fadas e outros seres, o padre Fixar tinha o proibido de alimentar nossas mentes com essas besteiras, não adiantou, Alfie continuou a contar, desde que não contássemos ao padre. Eu gostava dessas histórias, mas as temia, não gostava das criaturas noturnas desses contos, não eram seres amigáveis.
A noite estava gelada e eu não tinha me agasalhado, mas não me importei com isso. Procurei os dois na praça principal e pelas ruas que estava mais acostumado, mas foi em vão. Depois de um bom tempo os procurando foi que os achei, perto de uma casa, embaixo da janela, pularam o muro. Fiquei os observando por um tempo sem que eles notassem minha presença. Às vezes eles olhavam pela fresta da janela e voltavam as suas posições com sorrisos que eu bem conhecia.
Aproximei-me deles um pouco mais... E mais uma vez... Cheguei mais perto, até estar já no muro. E então criei coragem para seguir os espertalhõeszinhos, pulei o portão e eles me notaram assustados. Agachei receoso e fui ao encontro deles o mais silenciosamente possível, suas expressões pasmas me avaliaram por alguns instantes, eu estava com um embrulho na estomago e um aperto no peito, ofegava como um louco. Thomas ainda parecia atordoado por eu ter estragado a sua brincadeira, no entanto Charlie voltou a sorrir naquele modo malicioso.
- O que faz aqui senhor esquisito? Veio se juntar aos baderneiros?
Não entendi se aquilo era um passa fora ou um convite, na verdade eu mesmo não sabia o que estava fazendo ali, debaixo daquela janela.
- O que estão fazendo? – foi a única coisa que consegui dizer.
- Não é da sua conta menino das ovelhas. – indignou-se Thomas, eu tinha certeza de que ele sabia meu nome, mas me chamar de menino das ovelhas lhe era mais confortável, deixando claro, de que pra ele eu jamais deveria ter aparecido.
- Ora vamos caro Thomas, deixe-o participar. – Charlie indicou para mim a janela – Vamos, dê uma olhada. Mas tome cuidado.
Olhei para os dois apreensivo, precisava ver o que tinha lá. Tomei fôlego e acalmei-me, embora a adrenalina ainda persistisse, virei de frente para a parede. E fui lentamente me erguendo para a janela, pus minha mão na borda da janela e olhei acima, era só um cômodo escuro. Olhei para os dois ao meu lado.
- Não tem nada. – sussurrei.
- Olha em baixo da janela. – Sussurrou Thomas em resposta.
Com o peito aos pulos, debrucei-me sofre a janela. Tinha uma cama abaixo e lá, tinha uma moça, senti meus olhos abrindo e o coração acelerando ainda mais. Como era linda, devia ter 13 anos ou por ai, parecia mais velha que nós, a pouca luz que vinha das tochas da rua iluminavam somente parte do seu rosto. Era a primeira garota que eu via e poderia ficar ali olhando a noite inteira, mas me puxaram pra baixo com um puxão. Acordei do transe que tinha se apoderado de mim e voltei pra baixo da janela, virando-me para a parede e me apoiando nela respirando devagar.
- Bonita não é? – comentou Charlie com um sorrisinho.
- É linda. – respondi ainda descrente do que vi.
- Charlie que descobriu, – contou Thomas animado – quando a ele tava indo chamar o padre pra missa, semana passada, quando ele chegou atrasado. Não foi Charlie?
- É, é, foi sim. Mas agora temos que ir. Já ficamos tempo demais aqui.
Naquela noite eu não dormi, excitação, queria vê-la de novo, Charlie tinha dito que faríamos de novo amanhã e que não era pra contar pra ninguém. Como se eu falasse com alguém, há!

Depois do desjejum do dia seguinte eu precisava falar com os dois. Por que nunca tinham mulheres nas ruas? Seria aquela a única? Qual era o nome dela? Ah, eram tantas perguntas. Eu tinha que respondê-las, eu tinha que saber. Naquela manhã conversavam aos cochichos do outro lado da sala, eu os observava e de vez em quando nossos olhares se cruzavam. Não precisei ir atrás dos dois, eles sinalizaram para mim quando acabaram o desjejum e lavaram o copo sujo de leite de ovelha.
Corri para terminar o meu copo e sai à procura deles, estavam no quintal de trás, em baixo de um ajoncs que florescia com pequenas flores amarelas. Fizeram sinal para que eu me aproximasse. Sentei-me em frente a eles e em nosso grupinho fechado naquela roda tive meus primeiros amigos.
Charlie era mais sério e calculista do que eu imaginara, fez-me prometer que ia guardar segredo de tudo e contou-me porque estava permitindo que eu os acompanhasse em suas aventuras, precisava de mais uma mente pensante no grupo, já que Thomas não era o que se podia chamar de muito esperto. Estiveram me avaliando esses anos também, eu era cauteloso e discreto, era perfeito para um novo integrante, desde que não os traísse e era claro que eu nunca iria contar nada, só para ver aquela garota de novo, assim, me incluíram no grupo.
Charlie se apoiou na árvore após seu pequeno discurso, ficou olhando as flores amarelas lá em cima, Thomas o imitou, eu apenas os observava, não sabia se podia os considerar amigos ainda, embora eles tenham me incluído em seu grupo. Baixei os olhos e fiquei movendo a poeira do solo seco, já era hora de começar a responder minhas perguntas.
- Por que... Por que eu nunca vi garotas antes?
Thomas me observou, mas não respondeu. Charlie continuava concentrado, parecia meditar olhando o balanço das flores ao vento.
- Porque há anos não nascem mulheres por aqui, - disse Charlie ainda meditando com suas flores – e nem em lugar algum por essas bandas. As poucas que nascem são prometidas aos pomposos nobres e ficam trancafiadas nas suas casas até o dia do casamento. – ele agora me olhava – Se tem alguma esperança de namorar uma garota, é perda de tempo. Teve sorte por ter visto uma.
Senti-me enrubescendo, era essa mesmo minha esperança. Senti a tristeza e inconformação me invadir, queria acreditar que não era verdade, mas no fundo eu sabia que era. Esperei Charlie voltar a sua meditação, não gostava do olhar dele sobre mim, embora eu não tivesse dele o que temer.
- Como sabe de tudo isso?
- Sabendo... – respondeu-me com um bocejo.
Ele então esticou as pernas para ficar mais à vontade, colocou os braços sob a nuca e pareceu dormir. Thomas me olhava de vez em quando, às vezes me sorria encabulado quando eu retribuía-lhe o olhar.
- Eu não sou tão burro quanto Charlie acha. - disse ele baixinho para mim, parecendo temer que Charlie o escutasse.
- Aposto que não. – um sorriso bobo apareceu e os olhos muito azuis de Thomas se alegraram. Percebi que eu estava sorrindo e parei. – Vamos vê-la de novo?
- Oh sim, essa noite. – sussurrou ele com uma exaltação na voz. Senti-me um pouco mais feliz, podia vê-la, mas não tê-la. Minhas emoções estavam ausentes por tanto tempo, que agora que as tinha, senti como se doía o peito, não do amor que sentia pela garota, mas pelo ódio de não poder possuí-la. Essa era minha sina.

Debaixo daquela mesma janela mais uma vez, era o quarto dia seguido que íamos vê-la, mesmo assim, sentia que era a primeira vez. Apoiamo-nos na parede para recuperar o fôlego da euforia, eu tinha esperado o dia inteiro pra isso, ultimamente eu só pensava nela. Quando saíamos na cidadela com Alfie ou outro garotos, eu evitava ao máximo olhar para a casa, mas era bem difícil, por sorte ninguém reparava no garoto das ovelhas. Ela não era tão bonita assim, tinha o nariz ligeiramente torto, sobrancelhas grossas e era mais gorda do que qualquer um dos garotos de Alfie, mas não importava, cada vez que eu a olhava sentia que ela era a coisa mais bonita que eu já tinha visto. Talvez pelo simples fato de ser uma mulher. Eu adorava vê-la dormir, sentia sua respiração lenta, a pele branca parecia neve, delicada e fria, mas dela exalava calor, meus olhos eram vidrados e ciumentos. Pois eu sabia que Charlie e Thomas a viam da mesma forma.
Nos últimos dias quando me sobrava um tempo extra eu me juntava com os dois, era estranho pra mim, ter amigos, se é que eu já os podia chamar assim. Parecia-me que eles eram indiferentes a minha presença, mas não me ignoravam. Passei a gostar da companhia deles, passei a falar um pouco mais quando certo assunto me interessava, mas continuei cauteloso. Thomas era extremamente tagarela, e piadista, parecia que até os infortúnios alheios o divertiam, às vezes chegava incomodar. Charlie costumava se divertir um bocado com as palhaçadas de Thomas, e sinceramente eu, na maioria das vezes, também.
A única coisa que me desagradava e aborrecia era o fato de Charlie algumas horas ridicularizar Thomas, não em público e abertamente, mas entre nós. Horas parecia que Thomas não ligava, ria da situação, mas eu o percebia magoado. Não entendi bem o por que de Charlie agir assim, era meio de uma hora pra outra, quando Thomas estava se divertindo Charlie o agredia. Revoltava-me por dentro. Entretanto Charlie se arrependia na maioria das vezes e se desculpava. Os dois pareciam irmãos e eu não sabia se poderia um dia fazer parte dessa relação fraternal, era como se eu fosse um intruso, vendo os dois em sua intimidade de tantos anos, as brincadeiras que eu ainda não compreendia.
Naquela noite em questão, Thomas não tinha ido, passava meio mal da última vez que o vi, mas creio que não foi bem por isso, ele e Charlie tinham brigado mais uma vez, por um motivo tolo, porém, precisavam de distancia um do outro naquele momento, eu percebia isso. Ficaria com Thomas se Charlie não fosse ver a garota, acho que Thomas precisava mais do meu apoio do que Charlie. No entanto eu não queria, de forma alguma, deixar de ver a garota.
E enquanto eu e Charlie apreciávamos aquele momento olhando pela janela, do nada, começou uma tempestade. Chovia de tal forma, que as árvores balançavam a ponto de querer cair. Temendo chegar em casa encharcados, mas sabendo que era inevitável corremos amaldiçoando nosso azar. Voltávamos correndo o mais rápido possível. Mais molhados do que peixes, eu e Charlie percebemos que já não dava mais tempo de escapar-nos. Charlie xingou e parou de correr, eu fiz o mesmo, sentei na estrada enlameada e descansei.
- Sabe, acho que o Thomas sabia da chuva.- disse eu brincando, ironicamente me divertindo com nosso infortúnio.
Charlie me sorriu, mas hesitava como se quisesse me dizer algo, me olhava repetidas vezes rápido e voltava sua atenção para adiante da estrada, então se sentou ao meu lado. Certa hora ele começou a falar baixinho e então me desabafou sobre como era incomodo e frustrante ter que cuidar de Thomas, embora não fosse literalmente obrigação dele. Assustei-me com a repentina reclamação, parecia-me que os encrencados seríamos nós se Alfie descobrisse, nós é que estávamos encrencados.
- É como se ele dependesse de mim entende, Ivã? Como se sem eu ele fosse cair em um mal... Talvez você não entenda, não é? Mas é sim... Eu me sinto sob pressão e às vezes explodo com ele por isso, mostrar pra ele deixar de ser bobo. Pra se cuidar melhor...
Ele baixou os olhos, e eu... O que eu tinha a ver com aquilo? Eu até entendi. Certamente ele tinha que se abrir com alguém. Sinto não ser a pessoa mais adequada pra ele se abrir, eu não sabia o que falar. E por incômodos momentos ficamos calados debaixo daquela chuva que parecia não parar, oscilei em falar algo, talvez falar o que eu não queria, mas o que ele precisava ouvir.
- Talvez, ao nosso lado - eu arrisquei – ele se sinta à vontade, pra ser bobo, e não se preocupe em errar, mas acho que ele pode se virar sozinho quando precisa. Ele é inteligente Charlie, tem boas idéias, é meio piadista, mas ele sabe ser esperto.
- Eu tenho medo, Ivã. – Charlie encarava-me desesperado – Somos como irmãos! E se acontecer algo com ele? E se ele se meter em confusão e eu não estiver por perto?
Era triste, sentia que Charlie se preocupava demais, mas eu o compreendia, em teoria pelo menos, eu o compreendia. E sabia o que devia dizer, embora eu não quisesse me comprometer tão depressa com os dois.
- Eu cuido dele, - disse eu – não... Não querendo assumir seu lugar... Mas... Eu cuido dele se um dia você não estiver por perto.
Ele me olhou e sorriu. Pareceu que tirei um peso de suas costas. E é claro botei nas minhas, percebi ali que tinha seriamente me comprometido, mas estava calmo, calmo por ver que Charlie sorriu em paz e me agradeceu com verdadeira gratidão, não era um teste, eles realmente confiavam em mim, talvez até mais do que eu mesmo confiava.

Capítulo 1

Alta Idade Média; Alguma insula na Europa Ocidental;

Minhas lembranças apagadas e levadas à tona de repente esquecem-se de partes relevantes, mas não da essência da memória. De veras, não devo ter esquecido muita coisa depois dos meus nove anos, que foi quando comecei a minha solitária jornada, mas tenho uma boa memória, que pode ser preenchida pelos devaneios de minha mente, vou começar de onde me lembro. Naquela estrada desconhecida, com os pés molhados e sujos de barro, e os olhos cegos pelo tempo nublado e pelo escuro da madrugada. Aquela noite de... Deveria ser verão, mas agora não tenho certeza. Estava frio, muito frio, mesmo sendo verão, cambaleei por uma estrada ensopada e por diversas vezes cai sentindo a textura da lama e também seu gosto nada agradável. Algumas horas antes eu tinha partido escondido em uma carroça, agora, não sabia onde estava, nem fazia idéia. Caminhando faminto e exausto nem me dei conta de que a estrada tinha acabado quando dei de frente com uma enorme tora de madeira que se estendia até onde a minha vista eneblinada conseguia alcançar, parecia infinita, mas velha, podre, não demorei a achar em uma de suas extremidades um rombo pelo qual eu conseguiria passar, e após atravessá-lo deparei-me com uma cidadela por onde andei sem rumo por entre as casas, não me lembro do caminho. Recordo-me do vulto, uma grande construção, ainda a vejo em meus sonhos, subi em seus degraus tropeçando, escorregando, caindo e parando na porta.
Fui acordado as sacudidelas por um homem de bata preta na manhã seguinte, de rosto gentil, mas preocupado, ele levou o garotinho imundo pra dentro da construção, uma capela simples e rústica, lembro de ele ter falado comigo várias vezes, perguntando meu nome, eu nada falava, só via as infiltrações da parede branca em direção ao chão. A capela tinha cheiro de mofo úmido, os bancos de madeira precária que já estava se desfazendo e o altar, com algumas poucas velas, umas flores murchas e uma grande cruz enferrujada com um homem que parecia estar morto, dependurado nela.
Levado para um cômodo pequeno foi-me servido pão e água, que devorei esfomeado. Notei que o homem me observava, lá estava ele em frente a mim, sentado na cadeira enquanto eu comia no chão gélido de cimento, olhando para meus pés sujos. Ele então se apresentou como padre Fixar. Olhei-o melhor, não parecia velho, talvez tivesse uns 30 anos, olhos castanhos meio caídos, cabelos escuros, boca fina e rosto magro e sereno. Seu cabelo era cortado de forma estranha, como um círculo de fios de meio oco, ele usava uma bata negra e por cima um manto também preto, ambos feitos de lã. Dava-me uma sensação de segurança, mesmo assim eu não confiaria nele tão cedo, não confiaria em ninguém como antes. Encarei-o por um momento e pronunciei um nome que dali em diante adotaria, Ivã.

O padre Fixar fez inúmeras perguntas depois, de onde eu vim, quem eram meus pais, como cheguei até lá. Eu não o respondi, queria esquecer as verdadeiras respostas, mentir pra si mesmo pode ser a pior mentira, mas também foi a melhor solução. O eclesiástico parecia não saber o que fazer a meu respeito, quando viu que eu não respondia, saiu sem dizer nada, pouco depois abriu a porta e pediu que eu o esperasse. Eu não tinha porque desobedecê-lo. Fiquei ali encostado à parede branca, no pequeno cômodo de somente uma porta, olhando o vitral da janela ao alto. A saleta tinha apenas uma mesa, uma cadeira e um espelho.
A curiosidade me levou até meu reflexo, os desgrenhados cabelos ruivos fogo sujos de barro seco, foi à primeira coisa que me chamou atenção, eles estavam deveras grandes, lembro-me vagamente, mas acho que eram à altura dos ombros. Os olhos verdes profundos escondidos por traz do cabelo, o nariz com algumas poucas sardas, a boca fina. Não era o rosto mais atraente que eu já tinha visto, mas era ligeiramente agradável. Então vi o reflexo do reverendo as suas costas.
- Achei um lugar pra você.
Ele me guiou para fora da capela, pela rua ainda meio enlameada. Eu andava olhando pro chão, tinha vergonha e medo dos homens da rua, tinha certeza que olhavam para mim com desprezo, o garotinho sujo, muito embora hoje eu saiba que nem reparavam em mim, não eram menos maltrapilhos que eu. Não haviam mulheres na rua, como eu fui saber mais tarde, não tinham mulheres em lugar algum. A arquitetura era incoerente, como se pertencessem a civilizações muito distintas, em contraste com as casas a igreja era o que mais chamava atenção, mesmo assim a cidadela tinha um ar simpático e hospitaleiro, embora brutas as construções tinham um místico encanto.
Olhando para os lados algumas vezes, vi que a aldeia era cercada por um grande muro de pedra, me lembrei dele na noite anterior, era grandioso, mas de pouca utilidade, o portão de madeira deixado ao revés já apodrecera deixando um belo rombo numa das extremidades que facilmente eu diminuto garoto como eu pode passar. Na minha esquerda estava um magnífico castelo, com imponentes paredes de pedra que se erguiam formando três torres, mas ele, como o muro parecia ter sido deixado, não era um reino rico pelo que notara, provavelmente submisso a outro, que começava a se desenvolver ou em declínio, mas tarde descobri que era a última opção. O eclesiástico conversava comigo pelo percurso disse-me ele que algum tempo atrás aqui eu encontraria alguns guardas com suas lustrosas armaduras e lanças que supervisionavam o andamento do reino, porém eles, como o rei, tinham deixado a aldeia e rumado a outra que também os pertencia e que também perecia.
Os camponeses e pequenos comerciantes se vestiam com lã trançada, como eu, algumas pretas, outras brancas, a maioria amarronzada, os de condição melhor tinham braceletes ou colares de metal.
Chegamos a uma casa, paredes de pedra, um andar, telhado e porta de madeira, uma chaminé erguia-se e dela saia uma suave fumaça negra, no quintal cercado por estacas de madeira, tinham alguns garotos que gritavam em suas brincadeiras, umas duas ovelhas, um gato rajado e algumas poucas galinhas. O padre abriu a portinhola que lhe batia pouco abaixo da cintura.
- Venha, venha. Não precisa ficar receoso.
Fácil pra ele dizer, eu iria ficar ali? Como aqueles meninos de sorriso maldoso? Com aquele gato? Ah sim, eu não fui com aquele gato, nunca soube bem o porquê. O padre me estendeu a mão, ah, como eu queria dar o fora dali, mas aonde eu poderia ir? É. Pra lugar nenhum. Conformei-me com a minha situação, afinal não era tão ruim assim. Acompanhei o padre até a porta.
De dentro da residência vinha o som de uma voz cantando em murmúrios e o cheiro de lenha queimando, era um tanto hipnotizante. O eclesiástico abriu um ligeiro sorriso e chamou por um homem chamado Alfie. Os cantarolantes murmúrios cessam e eis que ouvimos a voz grave vinda da casa.
- Ora vamos, Richard, entre logo. Não me fará ir ai não é? Há, venha, traga o garoto de que me falou.
- Mais um, não é Alfie? Que Deus o abençoe. – e então fui levado ao Alfie, entrando na sala invadida pelo calor e brilho da pequena fornalha, senti-me como um porco que ia ser assado, mas o cheiro da casa era agradável e colhedor, notei a tapeçaria na parede à direita em cores vivas com formas que lembravam galhos e flores, uma cruz de madeira estava sobre a parede oposta e no meio da sala tinha uma mesinha de centro. O outro lado da sala estava Alfie, ao lado da fornalha, o rosto muito vermelho e suado com um sorriso amarelo estampado veio em nossa direção, em pesadas passadas de suas curtas pernas e corpo maciço.
Alfie abraçou o clérigo, que se curvou para fazê-lo. Embora demonstrasse ser cristão, Alfie parecia ser um descendente do povo que lá existia antes da evangelização, tinha uma densa barba negra com alguns fios já grisalhos, os olhos miúdos como besouros, meio careca e gorducho. Tinha um grande cinturão de metal na cintura. Havia vestígios da outra cultura por toda cidade, desde as construções até o escudo e o machado duplo que enfeitavam a parede ao lado da fornalha. O homem corpulento me analisou e depois de um momento dirigiu-me um sorriso amigável.
- Vai encontrar outros garotos lá fora, amiguinho, por que não vai lá brincar com eles?
Não queria agüentar aquele calor por muito mais tempo, mas preferia ficar ao lado do padre. Olhei pro chão e segurei a barra da manga do reverendo.
- Este é meio tímido Alfie, vai precisar de tempo pra se adequar.

Tinha cortado o cabelo no segundo dia lá, mas ainda sentia sua falta. Era estranho ter um cabelo curto, era bom. Depois de dois meses naquele lugar eu ainda não tinha feito nenhum amigo, só os observava, às vezes um dos 17 meninos vinha falar comigo, mas logo desistia. A maior parte do tempo eu cuidava das ovelhas, eram cinco ao todo, as escovava, alimentava, logo Alfie simpatizou comigo e eu com ele, me ensinou a tratar melhor dos animais. Mas eu continuava sem muitas palavras. Na semana seguinte a mim chegou outro menino, ouvi Alfie comentando com o padre Fixar que aquele deveria ser o último, pois a casa estava ficando muito lotada.
Os garotos de lá estavam sempre alegres, eram travessos e criativos, um ou outro fugia a regra como eu, mas era só na primeira semana. Criado de uma forma, digamos... diferente, tentei me adequar aos novos costumes, embora por vezes alguns dos meninos reparavam inconvenientes atitudes minhas e quando eu percebia, fazia esforço para mudar. Era difícil agir como um menino normal, pelo menos no começo.
Thomas e Charlie eram dois dos meninos de lá, sempre andavam juntos e arrumavam alguma encrenca. Charlie era ligeiramente maior e mais velho que Thomas, devia ter uns nove anos, como eu. Era loiro de cabelos anormalmente lisos e olhos castanhos muito vivos, tinha um sorriso maroto e malicioso de menino esperto que banca inocente, já Thomas tinha o cabelo castanho muito cheio e ondulado com olhos azul-claros, era meio bobo, obedecia Charlie em tudo que este mandava e parecia se divertir com isso, mas não sabia mentir como Charlie, por isso se encrencava mais.
Dormíamos todos no chão, na sala, que era o único cômodo da casa, Alfie dormia num canto perto da fornalha. Sempre custei a pegar no sono e em certa noite, aos 11 anos, flagrei Thomas e Charlie fugindo na madrugada, fiquei curioso e depois de agonizantes minutos de espera resolvi segui-los.

Prefacio


Ele estava sentado em sua cama, encarando a si mesmo, seus olhos frios refletidos no espelho, grandes olhos verde-escuro como o mar em certos dias, estavam cansados e tristes. O pequeno caco de espelho na palma de sua mão era incompleto, assim como ele, embora em outros tempos pertencesse a um refinado espelho rústico de uma delicada penteadeira.
- Você já pertenceu a ela não é, meu caro. – ele se ouviu dizendo ao espelho em suas mãos – Assim como você. – Afirmou rouco e friamente agora a seu reflexo.
Os olhos no espelho se arregalaram pasmos e o homem foi descendo o reflexo, passando devagar por um fino nariz, mas não delicado, e parando em sua boca com um sorriso irônico e maldoso.
- Vá atrás dela seu cão covarde! – Ele viu os lábios ordenando. Voltando o reflexo novamente os olhos, que quando se encaram ameaçadores se tornam mais uma vez tristes e cansados.
- Você sabe que não sou covarde, sou leal a meus amigos.
- Deveria ser leal a si mesmo, não cansa de se martirizar pelos que não te querem? Onde está seu amor próprio imbecil? Ela o levou também?
- Sim, ela o levou.
- Errado! Idiota! Ela não o levou, você o esqueceu!
- Sim, e para recuperá-lo eu preciso esquecê-la.
- Sabe que não consegue, porco inútil.
- Não! Está enganado! Se eu quiser...
- E você quer? Não, a ela não. Você nunca irá esquecê-la, você nem mesmo quer...
- Sabe que eu já tentei!
- Querer é poder meu caro, você tenta sem querer. Nunca vai esquecê-la assim.
Os lábios no espelho se calam, continuam, no entanto, com o sorriso cínico. Os olhos quando foram refletidos fizeram menção de argumentar, mas desistiram.
- Estou ficando louco? – perguntaram melancolicamente os tristes olhos verdes.
- Não, que ta doido é o espelho! – os lábios expressaram um sorriso satisfeito.
- Ótimo, um espelho sarcástico!
- Não se aborreça com esse mísero espelho, todos que conheceu até hoje eram loucos, não?
O espelho se despedaça na parede, o arremessou com toda sua força motivada pela raiva. O homem encara os retos do pequeno caco no chão de madeira empoeirado, olhava-os fixamente, como se ainda esperasse uma resposta dos lábios cínicos, mas ele nada ouve. Juntando seus pés para junto do corpo sobre a cama agora ele observa seus dedos, levando as mãos à cabeça massageia as temporas, começando a relembrar a própria história.