Capítulo 7

As carroças já estavam saindo na manhã. Eu, Charlie e Thomas nos sentamos na última que carregava a mobília, Álfie nos deixou responsáveis por ela, eu conduzia os animais que a puxavam, embora não precisasse de muita atenção, já que eles seguiam as carroças à frente. Da janela do seu quarto, Sarah nos acenava sorridente.
Íamos resgatá-la no aniversário de Charlie, à exatamente dois meses. Ele ia completar 16 anos e esperávamos que ele recebesse uma ajuda do padre Fixar, nós iríamos com ele, conversaríamos com o clérigo assim que chegássemos. No dia do aniversário de Charlie nós voltaríamos à mansão, resgataríamos Sarah e então partiríamos seguindo pela estrada ainda sem rumo certo, a procura de uma cidade costeira desse reino, o que não seria muito difícil, já que se tratava de uma ilha.
- Voltamos em breve Sarah. – disse eu baixinho enquanto acenava de volta e estalei o chicote para que os bois começassem a andar. Enquanto nos afastávamos Charlie e Thomas que se sentavam na parte de trás da carroça entre as cadeiras com os pés quase arrastando na terra acenavam para Sarah energicamente. Era um belo dia ensolarado, o dia em que deixamos a mansão.

Nos três meses que ficamos fora eu imaginava Sarah melancólica, seria infeliz. Às vezes ela escreveria em seu caderninho, fazendo planos talvez, para sua grande fuga. Será que ela pensava em mim? Bem... Devia ser certo que sim... E Charlie? Será que ela pensava mais nele do que em mim? Eu comecei a pensar se a distancia faria com que ela percebesse o quão eu era importante para ela, afinal, foram três meses de extrema tortura para mim. Eu só pensava nela.
Eu fantasiava todos os dias, ela levantando de sua cama e lavando o rosto numa bacia com água fresca, logo em seguida ela tomaria um desjejum, provavelmente a Sra. Coppais estaria ensinando-a a preparar um, ocasionalmente Sarah erraria alguma coisa, ela era estabanada, então deixando os ovos quebrarem ou queimando a comida. Com isso a Sra. Coppais lhe desferiria um severo tapa na bochecha rosada e lhe daria um sermão.
- Sua porca! Olhe o que fez! Eu não vou viver para sempre. – ela diria – Você vai ter que aprender a cozinhar para o seu marido. Não importa quantos servos uma nobre como você tenham, todas as mulheres devem aprender a cozinhar para seus maridos! Agora limpe isso.
Sarah simplesmente pegaria um pano e velho e limparia a bagunça, porque embora sua criada a Sra. Coppais era demais respeitada por Sarah, desde pequena foi ela quem a vigiou. Com seu pai morto e sua mãe doente em cama, Sarah foi criada e educada a maior parte do tempo por ela. Depois de limpo o chão Sarah deveria ter outras aulas com a Sra. Coppais, tear talvez, acho que era isso que as mulheres deviam fazer, assim foi-me ensinado no tempo em que eu não me chamava Ivã. Com o tear devia ser a mesma coisa: um erro, um tapa, um sermão e um recomeço, até que em fim ela fizesse uma bela peça e a Sra. Coppais lhe faria um elogio satisfeito.
As tardes, como eu sabia, ela receberia a visita da Duquesa e de seu filho. Voltaria a ser triste, monossílaba e desinteressada. As senhoras recomeçariam uma série de elogios as suas crias enquanto tomariam um chá na varanda, deixando os noivos longe o bastante dos ouvidos para deixá-los conversarem em paz, mas não longe o bastante de seus olhos curiosos que os avaliariam a cada instante.
- Devia ser horrível para uma dama como você viver aqui com todos aqueles garotos. – Eu ouvia Deniel dizer, Sarah meramente daria os ombros e continuaria com o olhar vagando pelo quintal. – Quero dizer... Eles não são como nós! São brutos e sujos! – Sarah não diria nada, só continuaria distante. Eu a conhecia o suficiente para saber que ela não concederia aquele sujeito nem mesmo o privilégio de uma discussão, ela fazia isso comigo quando estava zangada por alguma razão, não demonstrava, simplesmente agia como se fosse apática.
Eu sabia que as noites, depois de vestir a camisola e se deitar ela olharia para o teto, para as telhas que ela sabia que ainda estavam soltas e então ficaria pensando em todos nós, em nossas aventuras, em nossos risos e sorrisos, talvez até em nossas tolas discutições. Veria nosso jovial passado, refletiria sobre nosso triste presente e pensaria no nosso incerto futuro. E lá ela ficaria olhando para cima até adormecer, às vezes sorrindo, por vezes chorando.

E assim se passaram dois longos meses.

A noite estava anormalmente fria quando fomos buscar Sarah, chuviscava e ventava. Era o aniversário de Charlie, os tão esperados 16 anos. Naquela tarde o padre Fixar deu igual quantia em moedas para nós, não era muito, agora, nem me lembro exatamente quando, mas daria pra cada um comprar um cavalinho magro. Era uma ajuda que ele sempre nos dava com moedas que conseguia nas missas, por vezes justificava esse gasto como uma gratidão pela ajuda que dávamos à igreja, o que não era muito verdade, embora auxiliássemos na missa e cuidássemos da horta e animais que pertenciam a igreja, não fazíamos mais que nossa obrigação. Despedimo-nos dele com abraços e tapinhas nas costas à porta da igreja e caminhamos pelos paralelepípedos da rua principal até a casa de Alfie, tínhamos que nos despedir dele também, que tinha cuidado tão bem de nós. Lá estava ele, atrapalhado bronqueando alguns meninos novos que pareciam ter armado alguma coisa.
- Deixar a cidade? – perguntou-nos distraidamente – Hum... Eu já esperava. Para onde vão?
- Ainda estamos decidindo isso. – respondeu Thomas animadamente.
- Alguma sugestão, Alfie? – perguntei.
- Esse velho não conhece outro lugar que não seja esse vilarejo, meu rapaz. Não tenho o espírito aventureiro que parece habitar seus jovens corpos. – ele piscou – Dizem-me que os vilarejos mais próximos ficam a algumas milhas. Há uma cidade, hum... Lyr eu acho. É uma boa cidade pra quem quer aventuras, tem bastante gente por lá, e emprego também, foi o que me disseram.
- Em que direção?
- Sul. Pelo menos se não me falha a memória. – começou a rir naquele seu tom grave – Dizem que lá fica o mar... Já lhes contei histórias sobre o mar certo? E as sereias, eim? Os monstros marinhos, hehehe. Os muros não cercam só a terra sabem, o mar também é protegido por muros. Deve ser uma grande cidade... Com grandes navios...
Alfie pareceu vagar um pouco por seus pensamentos fantasiosos. A verdade é que não tínhamos pensado por onde seguir até então. Não tínhamos procurado saber de nenhuma cidade. Por sorte Lyr parecia exatamente o que procurávamos. Mas era estranho deixar todos, saber que nunca mais os veríamos, pessoas que por tanto tempo fizeram parte da nossa vida, pessoas que víamos todos os dias. Depois de umas informações sobre a direção da cidade abraçamos calorosamente Alfie que continuava atrapalhado cuidando dos pequenos meninos, ele nos deu sua benção, assim como o padre tinha feito.
- Cuidem-se bem, meus meninos. Vejam lá o que vão aprontar por ai, senhores espertinhos. Seus projetos de homem! – Ele nos piscou e nós nos fomos – Deus abençoe vocês! – gritou-nos acenando sorridente da varanda o pequeno homem gorducho e careca de olhos de besouro que ficava cada vez menor enquanto caminhávamos pela rua para nunca mais voltar, eu sentiria falta dele. Principalmente de suas histórias.
Tínhamos deixado a aldeia um pouco antes de começar a escurecer, mas já era muito tarde quando começamos realmente a nos aproximar da mansão. Olhei para o céu nublado de onde pequenas gotas desciam rápidas e leves... “Quando a lua estiver no ponto mais alto.” Foi o que tínhamos combinado com Sarah, era uma pena que só desse para ver a sombra da lua por de trás das nuvens, eu sempre achara muito belas as luas decrescentes, até mesmo mais que as cheias. Ao meu lado os meus dois melhores amigos olhavam distraidamente para a mansão, ela nos parecia bem menor agora que voltamos depois de tanto tempo. Mas o jardim para mim continuava grande, assim como a floresta negra que nos cercava.
Carregávamos pequenas sacolas de couro com alguns pertences, penduradas sobre nossos ombros, na minha eu levava apenas algumas roupas e uma faca, o dinheiro que tinha ganhado eu guardaria sempre nos bolsos.
- Acham que já está na hora? – perguntou Thomas olhando o céu, tinha arranjado um chapéu pontudo com uma longa pena vermelha na vila, presente de um dos meninos ao qual ele ensinara a ler, ficara com mais cara de menino do que de costume, um ar jovem e alegre.
- Acho que não. Vamos esperar mais um pouco.
Atravessamos a grama até o celeiro lá longe, eu estava com uma sensação estranha, uma adrenalina de quando se faz algo ilegal, era ao mesmo tempo ruim e ótimo. Selamos os cavalos e arriamos o asno amarrando o cabresto na sela de Lança, isso não demorou mais de 15 minutos. Agora só nos restava esperar. Sentia-me estranho, ansioso, entusiasmado, preocupado... Havia algo no meu estomago, uma dor estranha, que nem era realmente dor, era um embrulho, havia algo semelhante em minha garganta também. Sentei na entrada do estábulo com as pernas para fora e fiquei observando ora grama, ora o céu nublado. Charlie sentou-se ao meu lado, estava agitado, olhava para todos os lados até que respirou fundo e se dirigiu a mim.
- Ivã... Posso te contar uma coisa?
- Claro. – respondi ainda distraído com a grama.
Ele suspirou outra vez e algo terrível cortou meu peito quando ele disse a frase que ainda soa em minha mente.
- Eu amo a Sarah.
Algo me perfurou o peito.
- Sabe... – ele continuou e eu ainda não acreditava no que tinha ouvido – Eu não me envolveria numa situação dessas se não a amasse. Mas eu a amo.
Minha mente estava vazia. O certo seria eu responder alguma coisa na hora, até mesmo gritado! Defendido meu lado, pra mim esse seria o certo. Eu a amava! Eu a amei primeiro! EU ! ! !
- É diferente daquela garota que a gente viu na cidade quando pequenos, sabe? Aquilo era só admiração misturada com curiosidade, algo assim. Mas com a Sarah é diferente, eu sinto que faria qualquer coisa por ela. Eu daria minha vida pra ficar com ela.
Algo me despedaçava por dentro, eu sentia cada pedaço de mim ser cortado por um aço quente e impiedoso. Eu deveria ter contado ao Charlie que a amava! Assim eu teria o direito de ficar com ela, ele que procurasse outra garota! Como eu fui imbecil! Agora que ele tinha me contado eu nada poderia dizer, até mesmo porque eu sabia que ela gostava dele também. Qualquer coisa que eu dissesse agora, referente a amá-la seria inútil. Seria levado como traição! Perderia meus melhores amigos e também a Sarah. O que eu poderia fazer? Algo me sufocava.
- Ela é sua melhor amiga não é? – ele me perguntou. É claro que era, ele sabia, sabia que sim. – Eu tinha que te contar. Não só por você ser meu amigo como por você ter esse laço com ela. Sabe... Esse amor de amigo, de irmão.
AMOR DE AMIGO? AMOR DE IRMÃO? Que palhaçada era aquela? Ah... Agora eu entendera. Ele já notara que eu a amava como ele. Até mais que ele! Por isso dizia essas palavras, eu deveria ser só amigo, um titio de seus filhos, meus sentimentos deveriam ser só relativos à amizade. Para ele isso seria perfeito! Por isso ele afirmava que assim era, era sua esperança! Ele também não queria me perder como amigo, mas fazia isso para que mais tarde eu nada pudesse fazer para contestá-lo. Afinal eu era só um amigo. Eu queria estrangulá-lo naquela hora.
- É por isso que está aqui, não é? Por que você a ama como irmã.
Ele repetia para firmar a idéia na minha cabeça, quanto mais ele repetia mais chance aquilo teria de ser verdade. E mais eu tinha a vontade de matá-lo! De que ele nunca tivesse existido! De que ele não fosse meu amigo para poder estrangulá-lo! Amigo? Seria mesmo? Agora eu me sentia ao lado de um traidor! De um inimigo! Por que logo ele? Por que logo Charlie? Por que logo agora? Eu sentia que ia explodir, que não agüentava mais segurar o grito que estava trancado em mim! Sentia que ia chorar. Chorar tal o ódio que sentia naquele momento. Sentia que ia matar Charlie. Ou brigar com ele até a minha morte. Ia me levantar e pular em seu pescoço até que a voz de Thomas freou meu impulso.
- Acho que já está na hora.
- Vamos lá buscá-la então. – respondeu Charlie suspirando. – Vem comigo Ivã.
Eu estava refreando uma careta, tentando disfarçar o ódio em mim. Sentia os músculos da minha face se contraírem assim como os órgãos dentro do meu peito. Minha cara deveria ser muito estranha naquele momento, algo bizarro. Respirei fundo e disse “Vamos!”.
Iríamos eu e Charlie, pegamos a escada no estábulo. Eu estava calado tentando controlar meu ódio e ao mesmo tempo ele aumentava dentro de mim. O fato de eu estar sozinho com Charlie dava ainda mais margem a isso. Aquele traidor! Estaríamos sozinhos também no telhado. E enquanto subíamos as escadas até o telhado no segundo andar e eu sentia cada farpa, cada gota de chuvisco, cada som, cada cheiro no ar... Tive certeza de uma coisa. Eu jogaria Charlie do telhado.

23 comentários:

Millena disse...

Interessante o post!
Tentarei ler os outros capítulos.
Situação mais comum do que se pensa amar uma pessoa que ama outra.
Sucesso com o blog!

Paulo , Higor disse...

Que venha o proximo capitulo- =]

Henrique Alvez disse...

*---*
Nesse capítulo o que eu mais gostei foi a passagem dos sois meses entre a partida deles da mansão e a segunda partida, retornando à mansão....muitos autores aproveitariam essa parte para encherem linguiça e assim se tornaria mais uq e cansativo...Ádorei o jeito que vc fez, mostrando que o Ivã não parou um momento de pensar na Sarah ^^

ps: Maldito Charlie

Matheus disse...

Cara muito legal, se você começasse a imprimir esses textos ficaria muito legal. Você tem talento.
Ótimo blog.

Betty Gaeta disse...

Que venham os demais capítulos.
Parabéns!

May Galdino disse...

Legal!
Amo livros!
Vou ler ok?

Eduardo Andrade disse...

interessantíssimo, gostei

Je disse...

Olhe.. curti muito a idéia de postar toda terça..

Já ja tem um romance pronto.

Adorei as imagens dos personagens ali do ladinho, confesso que pela hora, ja não poderei ler tudo, li assim até o meio, amanhã volto e quero ler desde o primeiro capitulo.

Vou te seguir.

Um beijo moça.

pega ai! disse...

eu amo uma pessoa mas ela ama outra :( mas tento fazer outras coisas pra ñ penssar nela.

bem legal oblog.

Conrado Flecyo disse...

É uma historia bem longa, mas parece ser interessante, vou salvar nos meus favoritos pra ler os capitulos desde o comecinho, beijoooo!

Daniel Silva disse...

poucas pessoas conseguem encontrar um estilo próprio de escrita, e o que você faz é muito interessante

Astréia disse...

Muito legal a história (ah,o amor é lindo..kkk), você tem talento...

Parabéns!

Unknown disse...

Muitooo bomm, gosteii muito desse capitulo, ''Que venha o proximo capitulo'' Irei lerr tbmm!
Beijos

Anônimo disse...

Interessante, o capitulo mais forte e vigoroso em termos de conto do texto O Menino Que Esquecia O Passado

Ítalo Richard disse...

Peguei o bonde andando, mas a partir desse capítulo já dá para sentir a estória. Muito bem ecrita e interessante, ao contrário de algumas que a gente lê por aí cheia de exageros. Meu personagem favorito é Sarah.
Também gostei da imagem dos personagens.
Abraço!

www.todososouvidos.blogspot.com

Raphael Trew disse...

Estou ficando cada vez mais preso ao seu livro,que está cada vez melhor .
Continue assim !!!!

Priscilla Acioly disse...

agora que sei que se trata de um livro, vou tentar começar a ler desde o primeiro capítulo!

Limao =] disse...

Taa adorei esse capitulo + é o primeiro que eu leio eintaum fiko muitas duvidas no ar tipo pq eles fugiram e tipo tem muita gente que assim como eu naum curte muito ler "E-books" pq naum é igual ao ler um livro no papel sacas isso dificulta um pouco + memso assim a leitura do seu ta tranquila e gostei mesmo =D continue assim linda

Thamyzinha Iwasaki disse...

Você procurou públicar ou seja em uma editora?

você é muito taletosa Ester
também tenho um livro mais é diferente!...

kbritovb disse...

curti bastante
vo ler todos os outros capítulos pra entende melhor

Unknown disse...

Ansiosa pela continuação...

É aí que vem aquele pensamento, não estou sozinha nesta mundo!

http://memoriaspsicodelicas.blogspot.com

Lua- Eu Crio Moda disse...

parabens e vc desenhou os persongaens
o negocio aki ta d primeira linha

Anônimo disse...

Que lindo!! Eu li quase tudo, confesso. Estou no meu horáriode almoço, mas prometo que volto pra ler com carinho, pois de fato é muito bom. O seu jeito de escrever é leve e fluído, bom de ler.

A história é graciosa, e me deixou com gostinho de quero mais.

Estarei te seguindo.

bjinho

Branca